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Uma briga literária completa 30 anos
Raras desavenças entre escritores são tão venenosas quanto a disputa entre Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa
Novos detalhes surgem do embate que começou em 1976, quando Vargas Llosa
deu um soco no colega em um cinema mexicano
PAUL VALLELY
DO "INDEPENDENT"
Por que Mario Vargas Llosa
socou Gabriel García Márquez,
seu rival pelo título de mais importante romancista latino-americano do século 20, em um
cinema mexicano, em 1976,
dando início a uma das mais
longas brigas na história das letras contemporâneas?
Os dois gigantes do romance
moderno, que um dia foram
grandes amigos, não se falam
desde o dia em que o escritor
peruano aplicou um gancho de
direita contra o olho esquerdo
do escritor colombiano, há três
décadas. Nenhum dos dois revelou os motivos para a desavença, se bem que ambos tenham deixado escapar que se
tratava de "algo pessoal".
Ao longo dos anos, não faltaram especulações sobre a causa
do desentendimento original.
"Uma suspeita que circula amplamente é a de que a briga tenha sido causada por diferenças de opinião política", postulava recentemente um blog latino-americano.
É verdade que García Márquez foi e continua a ser esquerdista. Vargas Llosa, no entanto, abandonou o amor juvenil por Fidel Castro e disputou
sem sucesso a Presidência do
Peru, como candidato de direita. Embora suas opiniões políticas tenham divergido amplamente, não se acredita que tenha sido essa a causa da briga.
Outros observadores especularam que ciúmes profissionais
eram a causa do murro que deflagrou a discórdia. Embora seja considerado criador, ao lado
de García Márquez, do realismo mágico, os trabalhos de
Vargas Llosa não têm estatura
comparável aos do rival. "Cem
Anos de Solidão" é considerado
um dos clássicos definitivos da
literatura do século 20.
De acordo com uma nova
biografia de García Márquez,
"The Journey to the Seed" [a
jornada para a semente], de
Dasso Saldivar, os dois brigaram por causa de uma mulher.
E embora García Márquez já
tenha 80 anos, e Vargas Llosa
tenha chegado aos 70, a rivalidade entre eles não diminuiu.
No mês passado, o jornal inglês "The Guardian" informou
que Vargas Llosa havia escrito
um prefácio para uma edição
comemorativa de "Cem Anos
de Solidão" que será lançada
para celebrar o 80º aniversário
do autor, o 40º aniversário da
publicação do livro e o 25º aniversário de sua premiação com
o Nobel de literatura.
A agente literária de García
Márquez, Carmen Barcells, começou imediatamente a negar
a história. A edição especial incluirá o excerto de um ensaio
elogioso de Vargas Llosa sobre
o romance, escrito antes que os
dois se desentendessem.
Isso ainda assim revela que o
tempo serviu para abrandar a
disputa, ao menos parcialmente. Desde que o ensaio foi publicado, em 1971 (em edição que se
esgotou rapidamente), Vargas
Llosa se recusou a permitir que
fosse reimpresso, a despeito da
grande demanda e da existência de pelo menos uma edição
pirata. No ano passado, decidiu
voltar atrás, e permitiu que o
texto fosse incluído nas suas
obras completas, publicadas
em 2006, mas o que o motivou,
aparentemente, foi o desejo de
preservar a íntegra de seu legado literário pessoal.
Sinais ambíguos
Existem sinais ambíguos
também da parte de García
Márquez. Seu mais recente romance, "Memória de Minhas
Putas Tristes" [Record], foi publicado em 2004. Desde então,
ele vem dizendo a amigos que
seu gás acabou. Vargas Llosa,
em contraste, no ano passado
publicou "Travessuras da Menina Má". García Márquez aparentemente voltou a escrever,
nos últimos meses.
Em 2002, sob pressão de um
câncer que superou, o escritor
colombiano publicou "Viver
para Contar", o primeiro volume de uma autobiografia que
supostamente terá três partes.
García Márquez leva sua história apenas até 1955, e surgiram
informações de que ele não
queria começar a trabalhar na
segunda parte porque teria de
tratar, nela, do incidente que
deu início à briga.
"Compreendi que, se eu escrever um segundo volume, terei de contar coisas que não
quero sobre certas relações
pessoais que não são tão boas",
disse ao "Vanguardia" no ano
passado. Desde então, porém,
entrou em contato com amigos
para verificar datas e lugares e
para refrescar sua memória
quanto aos acontecimentos.
(Um amigo lhe aconselhou:
"Gabo, seja fiel às suas lembranças, não à sua biografia".)
Detalhes da história
Assim, o que o volume dois
revelará? De acordo com Saldivar, biógrafo de García Márquez, a história é a seguinte:
Ambos admiravam o trabalho um do outro, e logo que se
conheceram pessoalmente, em
1967, em Caracas, se tornaram
amigos inseparáveis. Haviam
vivido na pobreza em Paris, como escritores iniciantes, antes
de conquistarem o sucesso na
literatura, o que levou os dois a
se mudarem por algum tempo
para Barcelona. Dos sete anos
em que viveu na capital catalã,
Vargas Llosa dedicou dois ao
estudo da obra-prima de seu
amigo García Márquez, "Cem
Anos de Solidão", e escreveu
um longo e elogioso ensaio sobre o romance.
Mario vivia de olho nas mulheres. Para começar, quando
tinha apenas 19 anos, se casou
com sua cunhada, Julia, 13 anos
mais velha. O casamento não
foi feliz, mas deu ao jovem escritor o tema para "Tia Júlia e o
Escrevinhador". Um ano depois do divórcio, Mario se casou com sua prima Patricia,
com quem teve três filhos.
Mas ele nunca foi fiel. Apaixonou-se por uma bela comissária de bordo sueca, que conheceu durante uma viagem.
Deixou a mulher e se mudou
para Estocolmo.
Deprimida, sua mulher Patricia procurou o melhor amigo
do marido, García Márquez.
Depois de discutir o caso com
sua mulher, Mercedes, ele
aconselhou Patricia a pedir o
divórcio, e depois disso Gabriel
a consolou. Ninguém sabe exatamente que espécie de consolo
ele ofereceu. De acordo com
fontes próximas ao escritor colombiano, ele disse a Patricia
que "ela deveria abandonar o
marido, se ele voltasse".
Outras fontes, próximas a
Vargas Llosa, afirmam que, na
mesma noite, García Márquez
cometeu a pior (ou melhor) espécie de traição contra seu amigo Mario. Mas Vargas Llosa terminou voltando para a mulher,
que o informou do conselho recebido de Gabriel, e do consolo
que ele oferecera.
Briga no cinema
A história pára por aí. Algum
tempo depois, os dois escritores se reencontraram. Foi numa sala de cinema na Cidade do
México, onde a nata dos intelectuais latino-americanos estava reunida para a estréia de
"La Odisea de los Andes" [a
odisséia dos Andes], um mau
filme de René Cardona sobre a
interessante história de um desastre de avião que forçou os
sobreviventes, esportistas uruguaios, a se alimentarem dos
restos mortais de seus colegas.
Quando as luzes se acenderam, García Márquez viu Vargas Llosa sentado algumas fileiras para trás. Caminhou para
abraçar o velho amigo. Ao se
aproximar, recebeu um tremendo soco no olho esquerdo.
"Como você se atreve a me
abraçar depois do que fez com
Patricia em Barcelona?", indagou o peruano, lívido.
O rosto de García Márquez
estava sangrando. Um fotógrafo registrou a imagem, ainda
que ela não tenha sido publicada até o último dia 6 de março,
com 30 anos de atraso, pelo jornal mexicano "La Jornada".
Em um toque de realismo mágico, um amigo aplicou um bife
obtido de um açougueiro próximo ao olho roxo do escritor.
Os acontecimentos dos 30
anos seguintes não ajudaram.
Além de tentar encorajar a paz
na Colômbia, García Márquez
continuou a apoiar o líder comunista Fidel Castro, com
quem desenvolveu estreita associação. De sua parte, Vargas
Llosa sempre criticou ferozmente a ligação entre seu ex-amigo e Castro, e o definiu como "o cortesão". Enquanto
García Márquez se acomodava
a Castro, Vargas Llosa percorria a trajetória política inversa.
Dessa maneira a briga continua. Trata-se, como comentou
um observador, de uma disputa
"pessoal, prolongada, pública,
mesquinha e tão carregada de
raiva antiga que apenas os participantes (ou talvez nem eles)
devem saber como começou".
Se a briga já tinha animosidade,
rancor e má vontade recíproca,
além de literatura, política e
violência física, agora ela também tem sexo.
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