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São Paulo, quinta-feira, 17 de abril de 2003

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GASTRONOMIA

Particularidades do bacalhau a martelo

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Este bacalhau do martelo do concurso Bacalhau de Ouro deu o que falar. Foi parar até num livro francês de Odile Godard, que é muito chegada a livros de comidas afrodisíacas, sabe-se lá, o bacalhau a martelo pode ter outras virtudes. E o próprio Osório, no seu restaurante da Bahia, anda fazendo sucesso, virou point.
Eia, Osório, cuidado com a fama, olho na comida, no ingrediente e no freguês, senão um dia a casa cai! Conselho de velha que viu a vida passar!
Um leitor que come de tudo e muito bem e que me dá a honra de mandar cartas em que conta suas aventuras comilonas, me manda a receita, assim por cima (mas é assim por cima que se faz bacalhau, nada de frescuras de receitas muito certinhas), do seu bacalhau a martelo, parecido com o outro, mas com as diferenças que um bacalhau tem por bem ter, de casa em casa, assim gravando sua identidade de peixe nobre. Vamos ao leitor:
"Nina, ao escrever sobre a vitória de Osório Valente, com o bacalhau a Martelo, no concurso O Bacalhau de Ouro, você o trouxe de volta à minha memória papilar -é esta uma das ativadoras das demais, entre as quais a auditiva, a visual, e por aí uma porção de coisas.
Exatamente no domingo estávamos um grupo de baianos em volta do tabuleiro de Noêmia, debaixo de um sombreiro, no ensolarado aterro do Flamengo, conversando sobre coisas da cidade do são Salvador e também sobre o Recôncavo. Conversas puxadas não apenas pelo senhor acarajé de Noêmia como por uns seis ou oito siris -não sei se de mangue ou de proa- cozidos, trazidos por um dos fregueses e compadre de Noêmia.
Conversa vai, modo de educar, gosto de comer, conversa vem, palmatórias e eis que o baiano que trouxe os siris fala da preferência do pai dele. Coincidentemente também a do meu irmão mais velho -éramos 17 lá em Santo Amaro da Purificação: bacalhau de martelo, ou do martelo, ou a martelo, o fato é que dia em que meu irmão queria bacalhau daquele jeito fagueiro era motivo de festa na casa.
E o mesmo acontecia na casa do homem do siri, tal o entusiasmo e a luminosidade que transbordou da cara do sujeito.
Não hesitei em perguntar como é que o bacalhau era feito na casa dele. Do mesmo modo simples que na minha, mas diferente da forma do Osório: depois de dessalgado, a parte alta (lombo) do peixe era assada na brasa. Depois disso, e livre de toda e qualquer espinha, desfiado em lascas médias e, democraticamente, reunido com cebola, pimentão, tomate, pimenta-de-cheiro (esta a gosto) e coentro, picados e temperados com vinagre, um pingo d'água e azeite Galo. Galo, sim, porque naqueles tempos de globalização tíbia ainda não havia esses azeites extravirgens, que ampliaram em muito a nossa escolha. Tudo isso ia ao forno.
Arroz agulhinha soltinho e branquinho e um feijão-de-corda cozido em água, sal e alfavaca, eram os acompanhamentos perfeitos para o bacalhau a martelo.
À medida que o peixe começava a ser assado, também era dado início a um rol de perfumes vários e cumulativos na casa: o do feijão que estava acabando de fazer, o da cebola, que às vezes faz chorar, o do coentro, com sua nobre ajuda ao acender o apetite e o do azeite doce, cujo dom é o de ampliar a sedução dos sabores.
Agora que escrevo isso, também sou capaz de sentir o leve cheiro de Phebo (aquele âmbar), que vinha como quem quisesse anunciar que o almoço ia sair, uma vez que meu irmão mais velho -nosso pai já não estava mais entre nós- tinha acabado de tomar o banho para chegar cheiroso naquela hora sempre tão divina, a de comer.
Ele comia sem camisa e quem exalava o último cheiro da partida para o deleite geral era a aguardente, que lá em casa sempre era Birita. Assim mesmo, com caixa alta no B de Bahia. E de Bacalhau. Mas que apenas merece maiúscula quando bem-feito como o fazia, soberbamente, nossa mãe, Hildeth. Dete de Bemzinho para os íntimos".
Obrigada, Edmilson Oliveira da Silva. Sua receita é boa e simples, volte sempre e não aguento esperar chegar o Dia de Finados para contar como foi que vocês festejaram sua mãe no dia do velório dela. Com todo o respeito. Um abraço da Nina.

ninahort@uol.com.br


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