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CONTARDO CALLIGARIS
Hollywood dentro de nós
Na televisão americana, a cobertura da guerra no Iraque
foi manifestamente patriótica.
Sobretudo na Fox e na NBC, repórteres e apresentadores lideravam a torcida pelas tropas. Pareciam querer alimentar a aprovação pública da guerra.
Por isso, desde as primeiras baixas, minha expectativa era que,
nas mídias, as perdas americanas fossem anunciadas e celebradas
como heróicas, mas não ocupassem muito espaço, para evitar
que o espectador encontrasse razões para duvidar ou desesperar.
Afinal, nos EUA, durante a Guerra do Vietnã, a opinião pública
tornou-se pacifista com as imagens da volta ao país dos corpos
dos soldados mortos.
Para minha surpresa, aconteceu o contrário. Até segunda-feira, conforme a Reuters, na invasão do Iraque morreram 117 militares americanos -sem contar os
prisioneiros (agora soltos) e os desaparecidos. Dia após dia, todos
tiveram nomes, caras e, sobretudo, histórias. As equipes de reportagem correram para entrevistar
as famílias, os amigos e os vizinhos. De cada soldado morto
aprendemos em qual onda migratória e por que caminhos sua
família ou seus ancestrais chegaram aos EUA, em que cidade ele
tinha nascido ou crescido, em que
escolas tinha estudado. Soubemos
por que decidira entrar no Exército ou nos marines, se tinha irmãos ou irmãs e se esses também eram, foram ou planejavam ser
militares. Será que a mãe encorajara ou hostilizara a escolha de
vida do filho ou filha? O que o pai
tinha pensado e o que pensava,
agora, da guerra? Era frequente
que um familiar lesse a última
carta do soldado. Apareciam os
órfãos, as viúvas e os viúvos. Em
suma, a maneira de celebrar os
que tinham perdido a vida era reconstruir a unicidade de suas
existências.
O "New York Times" começou a
publicar, para cada soldado morto, capturado ou desaparecido,
um retrato e um resumo de sua
jornada. Essas pequenas galerias
de rostos evocavam, na memória,
uma outra galeria, bem maior,
que ocupou as páginas do mesmo
jornal durante meses depois do
atentado do 11 de setembro de
2001: os retratos e os obituários de
todas as vítimas do ataque. Um
ano mais tarde, na cerimônia do
aniversário do atentado, em Nova York, não houve discursos de
fundo, mas diversos oradores alternaram-se no palco para ler em
voz alta, um a um, os nomes das
2.801 vítimas.
A cultura americana, mais do
que qualquer outra, vive e pensa
a coletividade como um conjunto
de indivíduos.
Para um europeu ou um sul-americano, comemorar, explicar
e mesmo narrar um acontecimento é, no mínimo, problemático sem explorar sua dimensão
propriamente social: o encontro
ou a luta de idéias, classes, nações, grupos, grandes interesses
econômicos etc.
Para um americano, um fato,
por social que seja, é, fundamentalmente, a história dos indivíduos que nele se envolveram. Assim, a conquista do Oeste é contada como a história da arrogância
suicida do general Custer ou, numa versão progressista, como o
drama de Touro Sentado antevendo o fim de sua gente. A narração pode subentender o conflito entre, por exemplo, a marcha gananciosa da modernidade e o direito dos indígenas à vida e à sabedoria de sua própria cultura.
Mas a forma da história é sempre
a aventura singular de homens e
mulheres.
Na semana retrasada, a soldado Jessica Lynch, prisioneira dos
iraquianos, foi liberada por uma
ação das forças especiais. A televisão americana nos fez conhecer a
casa, os pais, o irmão, a irmã, a
motivação e os projetos de Jessica.
Uma das grandes revistas semanais propôs na capa uma variante do título de um famoso filme de Steven Spielberg: "O Resgate da
Soldado Lynch".
Hollywood só podia nascer numa cultura em que, seja qual for a
dimensão social dos fatos, a experiência toma, espontaneamente e
para todos, a forma de uma história de aventuras. Nesse tipo de
cultura, qualquer vida promete
um roteiro de filme.
Criticamos ou desprezamos
Hollywood pelas simplificações,
pelos silêncios e pelas ignorâncias,
talvez inevitáveis ao reduzir a
complexidade da história às andanças singulares dos indivíduos.
Mas, no fundo, essa crítica se endereça a nós mesmos. Defendemos um entendimento do mundo
em que causas e conflitos coletivos
são mais importantes que a epopéia dos indivíduos. Temos toda a
razão. No entanto a crítica do reducionismo de Hollywood é a
maneira que encontramos para
reprimir uma dimensão crucial
de nossa própria experiência: o
mundo nos interessa só porque
constitui o cenário da aventura
de nossas vidas. Hollywood, desprezada, cativa-nos e fascina-nos
porque glorifica um individualismo que é o nosso. Portanto, mesmo envergonhados, entramos no
cinema.
Um exemplo. Certo, os americanos perderam a Guerra do Vietnã. Alguns dizem, resignados, que
o conflito, além de horrível, foi
inútil: os EUA, a longo prazo, ganhariam sem guerra, à força de
propaganda ou porque o McDonald's se instalaria em Hanói. Errado e um pouco primário: a sedução é outra. Responda rápido:
o que é para você a Guerra do
Vietnã? "Nascido para Matar",
"Platoon" ou "Apocalypse Now"?
ccalligari@uol.com.br
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