São Paulo, terça-feira, 17 de abril de 2007

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CECILIA GIANNETTI

Eu reportava ao sr. Nakamura


É Nakamura que o chefe sempre vê antes de mim; eu chego atrás, injustamente julgado: folgado, atrasado

MEIO DIA e 15 -a rua do Ouvidor me propõe desafios que eu perco. Tento seguir reto por ela, e a impossibilidade de confiar numa lógica mínima dos fluxos de gente me rouba tempo. Rouba celular e bate carteira, se não tomo conta dos bolsos.
É um formigueiro que me almoça se eu não me retraio. Cria regras, deliberadamente, e me faz obedecer a movimentos bruscos como frear, contornar, descer da calçada para desviar da mulher de quadris exa- gerados, de pastas de couro que nos atingem como se fossem de chumbo.
Espaçosos e atrevidos têm maior poder sobre o trânsito das ruas estreitas do centro. Eu? Salto desajeitado de volta à calçada para escapar de um bloco sólido de funcionários, certamente todos de uma mesma empresa. Muralha móvel, intransponível, em disparada até um restaurante. Não há caminho possível entre os arrastões corporativos de execs e secs em busca de comida a quilo. Encolho-me dentro do meu terno e me refugio numa lojinha cheia de jeans manchados.
Deus! Pelo meu Terno, meu Emprego, meu Bom Gosto, obrigado, obrigado... E me conceda mais esta graça: chegar do almoço antes do Nakamura.
Vejo Nakamura cortar a turba mais rápido que eu, vejo Nakamura atravessar antes de mim e estou a cinco passos do edifício e dez andares do escritório, a um minuto de espera e da subida no elevador. Nakamura sempre sobe primeiro, Nakamura vai conseguir a promoção. Nakamura impõe com firmeza seu corpo franzino à frente de um homem que olha a vitrine da Varca, investe contra nova parede de secretárias esfomeadas, enfrentando a ameaça de seus sapatos de saltos como pontas de lanças finas. Como quem nasce para dentro do prédio, Nakamura enfia a cabeça, depois os ombros, depois o tronco e pernas e pés e pronto: está no hall.
É Nakamura que o chefe sempre vê antes de mim; eu chego atrás, injustamente julgado: folgado, atrasado, irresponsável. Não desta vez. Agora vai dar, sim, pois eu vou e piso e esbarro, esmago, sujo e caio e levanto e todos me olham e chego e até cumprimento "Nakamura!" num tom agradável, apesar da falta de ar. Observo a luz vermelha descendo os andares: 12, 11, 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2 e, quando chega ao 1, Nakamura me empurra discretamente para escanteio, vai passar na minha frente. E passa. A turba faz o mesmo, fico para trás. Outros se aglomeram atrás de Nakamura, só conseguirei subir na próxima leva. Quando a porta do elevador se abre, Nakamura é o primeiro: joga a perna direita e depois a esquerda e o corpo veloz -e o que aconteceu?
Está escuro, a porta aberta dá para o breu, a porta aberta dá para o nada, e Nakamura tenta inutilmente deter seu peso no ar. Percebem tarde demais que ele ainda apelou com a mão antes de cair.
Não posso dizer que estou 100% satisfeito com meu novo cargo. Abaixo de mim, agora, já tem um funcionário querendo subir.


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