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CECILIA GIANNETTI
Eu reportava ao sr. Nakamura
É Nakamura que o chefe sempre vê antes de mim; eu chego atrás, injustamente julgado: folgado, atrasado
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MEIO DIA e 15 -a rua do Ouvidor me propõe desafios
que eu perco. Tento seguir
reto por ela, e a impossibilidade de
confiar numa lógica mínima dos fluxos de gente me rouba tempo. Rouba celular e bate carteira, se não tomo conta dos bolsos.
É um formigueiro que me almoça
se eu não me retraio. Cria regras, deliberadamente, e me faz obedecer a
movimentos bruscos como frear,
contornar, descer da calçada para
desviar da mulher de quadris exa-
gerados, de pastas de couro que
nos atingem como se fossem de
chumbo.
Espaçosos e atrevidos têm maior
poder sobre o trânsito das ruas estreitas do centro. Eu? Salto desajeitado de volta à calçada para escapar
de um bloco sólido de funcionários,
certamente todos de uma mesma
empresa. Muralha móvel, intransponível, em disparada até um restaurante. Não há caminho possível
entre os arrastões corporativos de
execs e secs em busca de comida a
quilo. Encolho-me dentro do meu
terno e me refugio numa lojinha
cheia de jeans manchados.
Deus! Pelo meu Terno, meu Emprego, meu Bom Gosto, obrigado,
obrigado... E me conceda mais esta
graça: chegar do almoço antes do
Nakamura.
Vejo Nakamura cortar a turba
mais rápido que eu, vejo Nakamura
atravessar antes de mim e estou a
cinco passos do edifício e dez andares do escritório, a um minuto de espera e da subida no elevador. Nakamura sempre sobe primeiro, Nakamura vai conseguir a promoção. Nakamura impõe com firmeza seu corpo franzino à frente de um homem
que olha a vitrine da Varca, investe
contra nova parede de secretárias
esfomeadas, enfrentando a ameaça
de seus sapatos de saltos como pontas de lanças finas. Como quem nasce para dentro do prédio, Nakamura
enfia a cabeça, depois os ombros, depois o tronco e pernas e pés e pronto:
está no hall.
É Nakamura que o chefe sempre
vê antes de mim; eu chego atrás, injustamente julgado: folgado, atrasado, irresponsável. Não desta vez.
Agora vai dar, sim, pois eu vou e piso
e esbarro, esmago, sujo e caio e levanto e todos me olham e chego e até
cumprimento "Nakamura!" num
tom agradável, apesar da falta de ar.
Observo a luz vermelha descendo os
andares: 12, 11, 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2 e,
quando chega ao 1, Nakamura me
empurra discretamente para escanteio, vai passar na minha frente. E
passa. A turba faz o mesmo, fico para
trás. Outros se aglomeram atrás de
Nakamura, só conseguirei subir na
próxima leva. Quando a porta do
elevador se abre, Nakamura é o primeiro: joga a perna direita e depois a
esquerda e o corpo veloz -e o que
aconteceu?
Está escuro, a porta aberta dá para
o breu, a porta aberta dá para o nada,
e Nakamura tenta inutilmente deter
seu peso no ar. Percebem tarde demais que ele ainda apelou com a
mão antes de cair.
Não posso dizer que estou 100%
satisfeito com meu novo cargo.
Abaixo de mim, agora, já tem um
funcionário querendo subir.
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