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LIVROS
"Temos a tecnologia de ponta do ócio"
Para Wisnik, o Brasil cumpre sua promessa de felicidade no futebol ao demonstrar vocação para explorar atalhos inesperados
Ensaísta diz que jogo admite situações narrativas, com o trágico, o cômico e o lírico; comparar Pelé e Machado "é provocação para país iletrado"
DO EDITOR DA ILUSTRADA
Leia a seguir a entrevista de
José Miguel Wisnik sobre alguns aspectos do livro "Veneno
Remédio - O Futebol e o Brasil".
(MARCOS AUGUSTO GONÇALVES)
FOLHA - Ao tentar enfrentar o futebol em si mesmo e em sua formação
brasileira, você se surpreendeu com
o que encontrou?
JOSÉ MIGUEL WISNIK - Acho que é
importante dizer que cresci na
Baixada Santista, onde havia
futebol de praia, futebol de várzea e futebol profissional, indo
do Corinthians da Vila Cascatinha, em São Vicente, ao Santos
de Pelé. De certa forma, nenhum desses futebóis era menos importante que o outro.
Não cheguei ao futebol como
um pesquisador que se depara
com um objeto inesperado,
mas como um adepto em constante pesquisa de campo que
foi convertendo suas surpresas
em um pensamento mais sistemático. Não escondo que escrevo a partir de uma paixão, mas
assumo me colocar num lugar
em que a paixão não exclui a
exigência crítica. É o que vejo,
por exemplo, nos textos de Pasolini sobre futebol, que me
inspiraram muito.
O caminho foi o de tratar o
futebol considerando em primeiro lugar o que acontece
dentro do campo, e, a partir disso, os seus efeitos e os interesses de todo tipo envolvidos nele, incluindo a violência, a alienação e a sua capitalização generalizada. A abordagem joga
com dados estéticos, psicanalíticos, literários, colocados em
perspectiva histórica.
No Brasil, têm sido escritos
bons livros historiográficos, sociológicos, biográficos e jornalísticos, que tratam do que se
passa em torno do campo, mas
pouco ensaio interpretativo, filosófico-cultural, sobre o que
se passa dentro do campo.
FOLHA - O que difere o futebol dos
outros jogos de bola?
WISNIK - Os jogos modernos de
bola, como o basquete, o vôlei, o
tênis, sem falar no futebol americano e no beisebol, são compactados em duelos claros de
ataque e defesa que resultam
em pontos ou ganho de território. São estruturados em confrontos de competência sucessivos, produtivos, que se traduzem todo o tempo em números
e posições, cuja acumulação
passo a passo define o vencedor. Já o futebol cria uma zona
fluida, cheia de idas e vindas,
incontáveis perdas e recuperações da bola, sendo que a maioria delas não se converte nem
em pontos, nem em consolidação de posição. O gol pode não
sair, mesmo sob bombardeio
cerrado, ou pode surgir, inesperado, do nada. Por isso mesmo
o futebol admite uma gama
mais variada de situações narrativas, na qual entram componentes dramáticos, trágicos,
cômicos, épicos, paródicos e
mesmo líricos.
Ele abrange um arco existencial mais amplo que o do princípio da concorrência. A margem
de gratuidade, de acaso e de
possível envolvimento é maior.
Ele se parece mais com a vida,
mesmo sem ser uma representação direta dela. Eu acredito
que isso tenha relação com o fato de ele ter se tornado o mais
mundial dos esportes.
FOLHA - Por que o futebol casou-se
tão bem com o Brasil?
WISNIK - Como todos sabemos,
o futebol brasileiro explorou a
margem de gratuidade lúdica
que o futebol admite, fazendo
disso um instrumento eficaz.
Se o futebol inventado pelos ingleses realiza uma espécie de
"quadratura do circo" da modernização, unindo o jogo e o
rito, com elementos modernos
e pré-modernos, o futebol brasileiro entrou com a elipse, o
lance não-linear, demonstrando uma vocação toda própria
para explorar e potencializar os
seus atalhos inesperados.
No domínio desses dons invejáveis e ao mesmo tempo
"improdutivos", com tudo o
que isso possa ter de ambivalente, o Brasil se apresenta aos
olhos do mundo como produtor de uma espécie de tecnologia de ponta do ócio.
De onde vem isso? Da conjunção de escravismo com
mestiçagem, da dialética da
malandragem, do "homem cordial", do atraso, da potência antropofágica? Nem vou começar
a responder isso aqui, depois de
ter terminado um ensaio que
era para ter 40 páginas e acabou tendo 400. Só quero lembrar que, ao contrário de todas
as outras áreas da cultura de
massa, em que dominam os padrões norte-americanos, o esporte mais mundial não interessa aos americanos, e os esportes norte-americanos não
interessam ao mundo.
Nesse curioso ponto em que
falha a hegemonia do imaginário americano é que aparece,
intrigantemente, o Brasil.
FOLHA - Quais as diferenças principais entre o futebol atual e aquele
dos tempos do rei Pelé?
WISNIK - A fama de Pelé ganhou o planeta como uma lenda viva sem logomarca. É o primeiro mito esportivo realmente planetário e o último sem
marketing. Não se elegia, como
agora se faz, o "número um" do
mundo (cilada em que têm caído todos os eleitos). Os jogos
eram mais francos, e as defesas,
mais abertas.
De lá para cá, cresceu o princípio de "otimização do rendimento", vedetizou-se a figura
do técnico, turbinou-se a preparação atlética, cerrou-se a
concorrência em todos os níveis, uniformizaram-se muito
os estilos de jogo e banhou-se
tudo em publicidade.
É claro que há uma perda de
inocência, de encanto e de graça. A diferença brasileira também não tem o mesmo lugar.
Quem ler o livro verá, no entanto, que não me coloco na posição do sentimentalismo nostálgico, nem na do crítico que vê
de cima e de fora. Procuro ver
de dentro e de fora.
FOLHA - Ao explorar, no capítulo
mais teórico do livro, uma correlação entre Machado de Assis e Pelé,
você afirma que a promessa de felicidade brasileira só se completará
com uma segunda abolição da desigualdade e com a cura do dispositivo doentio segundo o qual o país é
receita de felicidade ou fracasso sem
saída. Você poderia identificar os
atores e motivos desse Fla-Flu?
WISNIK - Alguns podem pensar
que eu estou barateando a literatura ao fazer um contraponto
entre Machado de Assis e Pelé.
Mas eu, que sou professor de literatura, considero essa relação, feita na parte final do livro,
como uma provocação contra
este país definitivamente iletrado em que nós estamos nos
transformando.
A literatura, a música e o futebol são instâncias incontornáveis para entender o Brasil
que "não é para principiantes",
como dizia Tom Jobim. Machado é o ponto de chegada da
formação da literatura brasileira, e Pelé é o ponto de chegada
da formação do futebol brasileiro. Os dois, mais João Gilberto, são as figuras únicas, todas
as três enigmáticas e quase inabordáveis, do salto espantoso
que acontece no momento em
que o processo formativo se
completa nas três frentes.
Por meio de algo que neles
ganha forma a partir da experiência brasileira, mas que na
experiência brasileira não se
completa, o Brasil aparece como melhor e pior do que ele
mesmo. O futebol realiza a democracia racial que o Brasil não
realiza. A agudeza e a atualidade antecipatória que a obra de
Machado realiza paira sobre a
viciosa incapacidade de mudar
que ele mesmo acusa no país.
A ótica machadiana é a da negatividade: o raio-X irônico sobre a nossa síndrome de fuga
para o imaginário e o conseqüente tombo no real. As Copas
de 1950 e a de 2006, cada uma a
seu modo e a seu tempo, por
exemplo, podem ser vistas como episódios crônicos de tipo
machadiano. O emplasto Brás
Cubas é de certa maneira a fórmula disso: a panacéia universal que curaria a humanidade,
mas que mata seu inventor antes que ele a invente.
O futebol brasileiro, no entanto, resultou numa espécie
de emplasto Brás Cubas que
deu certo em escala universal:
"O alívio da nossa melancólica
humanidade", reconhecido como tal em todos os quadrantes
do planeta. Juntando o veneno
e o remédio, ficamos numa
gangorra infantil entre o tudo e
o nada que é bem nossa conhecida. Isso está na relação ciclotímica da torcida com a seleção
brasileira, na oscilação permanente entre deslumbramento e
pessimismo que rege a avaliação do país, e na divisão entre a
cegueira com que nos entregamos ao futebol e a posição altiva com que o "crítico" o desqualifica. Sair dessa síndrome é
a condição imaterial de qualquer mudança. A condição material é a abolição da desigualdade campeã mundial.
FOLHA - No livro, parece que a idéia
de veneno remédio ganha mais sentido com Gilberto Freyre. Qual a vantagem das teorias de Freyre sobre a
sociologia uspiana na interpretação
da cultura brasileira?
WISNIK - Na parte final do livro
procuro ver como os três grandes intérpretes clássicos, Caio
Prado Junior, Gilberto Freyre e
Sérgio Buarque, encaixam-se
no que seriam os respectivos
pontos cegos e luminosos, gerando um tipo de transleitura.
Não considero, assim, nenhuma vantagem absoluta de
um sobre os outros. O mais importante me parece ser a identificação dos paradigmas que
eles fundam e representam, e
como esses paradigmas se articulam nas suas diferenças.
Mas vantagens relativas de
Gilberto Freyre me parecem
importantes. Para quem escreve um livro sobre futebol, Freyre é aquele que tomou pioneiramente o futebol, no caso, a
Copa de 1938, como a demonstração de suas teses de "Casa-Grande & Senzala" e "Sobrados
e Mucambos". Sua obra pode
ser pensada como um enfrentamento do famoso "complexo de
vira-latas" de Nelson Rodrigues, a revirada dos estigmas da
colonização numa saída original graças à "reciprocidade de
culturas", a passagem do vira-lata ao vir-a-ser.
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