São Paulo, sábado, 17 de maio de 2008

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LIVROS

"Temos a tecnologia de ponta do ócio"

Para Wisnik, o Brasil cumpre sua promessa de felicidade no futebol ao demonstrar vocação para explorar atalhos inesperados

Ensaísta diz que jogo admite situações narrativas, com o trágico, o cômico e o lírico; comparar Pelé e Machado "é provocação para país iletrado"


DO EDITOR DA ILUSTRADA

Leia a seguir a entrevista de José Miguel Wisnik sobre alguns aspectos do livro "Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil". (MARCOS AUGUSTO GONÇALVES)

 

FOLHA - Ao tentar enfrentar o futebol em si mesmo e em sua formação brasileira, você se surpreendeu com o que encontrou?
JOSÉ MIGUEL WISNIK
- Acho que é importante dizer que cresci na Baixada Santista, onde havia futebol de praia, futebol de várzea e futebol profissional, indo do Corinthians da Vila Cascatinha, em São Vicente, ao Santos de Pelé. De certa forma, nenhum desses futebóis era menos importante que o outro.
Não cheguei ao futebol como um pesquisador que se depara com um objeto inesperado, mas como um adepto em constante pesquisa de campo que foi convertendo suas surpresas em um pensamento mais sistemático. Não escondo que escrevo a partir de uma paixão, mas assumo me colocar num lugar em que a paixão não exclui a exigência crítica. É o que vejo, por exemplo, nos textos de Pasolini sobre futebol, que me inspiraram muito.
O caminho foi o de tratar o futebol considerando em primeiro lugar o que acontece dentro do campo, e, a partir disso, os seus efeitos e os interesses de todo tipo envolvidos nele, incluindo a violência, a alienação e a sua capitalização generalizada. A abordagem joga com dados estéticos, psicanalíticos, literários, colocados em perspectiva histórica.
No Brasil, têm sido escritos bons livros historiográficos, sociológicos, biográficos e jornalísticos, que tratam do que se passa em torno do campo, mas pouco ensaio interpretativo, filosófico-cultural, sobre o que se passa dentro do campo.

FOLHA - O que difere o futebol dos outros jogos de bola?
WISNIK
- Os jogos modernos de bola, como o basquete, o vôlei, o tênis, sem falar no futebol americano e no beisebol, são compactados em duelos claros de ataque e defesa que resultam em pontos ou ganho de território. São estruturados em confrontos de competência sucessivos, produtivos, que se traduzem todo o tempo em números e posições, cuja acumulação passo a passo define o vencedor. Já o futebol cria uma zona fluida, cheia de idas e vindas, incontáveis perdas e recuperações da bola, sendo que a maioria delas não se converte nem em pontos, nem em consolidação de posição. O gol pode não sair, mesmo sob bombardeio cerrado, ou pode surgir, inesperado, do nada. Por isso mesmo o futebol admite uma gama mais variada de situações narrativas, na qual entram componentes dramáticos, trágicos, cômicos, épicos, paródicos e mesmo líricos.
Ele abrange um arco existencial mais amplo que o do princípio da concorrência. A margem de gratuidade, de acaso e de possível envolvimento é maior. Ele se parece mais com a vida, mesmo sem ser uma representação direta dela. Eu acredito que isso tenha relação com o fato de ele ter se tornado o mais mundial dos esportes.

FOLHA - Por que o futebol casou-se tão bem com o Brasil?
WISNIK
- Como todos sabemos, o futebol brasileiro explorou a margem de gratuidade lúdica que o futebol admite, fazendo disso um instrumento eficaz. Se o futebol inventado pelos ingleses realiza uma espécie de "quadratura do circo" da modernização, unindo o jogo e o rito, com elementos modernos e pré-modernos, o futebol brasileiro entrou com a elipse, o lance não-linear, demonstrando uma vocação toda própria para explorar e potencializar os seus atalhos inesperados.
No domínio desses dons invejáveis e ao mesmo tempo "improdutivos", com tudo o que isso possa ter de ambivalente, o Brasil se apresenta aos olhos do mundo como produtor de uma espécie de tecnologia de ponta do ócio. De onde vem isso? Da conjunção de escravismo com mestiçagem, da dialética da malandragem, do "homem cordial", do atraso, da potência antropofágica? Nem vou começar a responder isso aqui, depois de ter terminado um ensaio que era para ter 40 páginas e acabou tendo 400. Só quero lembrar que, ao contrário de todas as outras áreas da cultura de massa, em que dominam os padrões norte-americanos, o esporte mais mundial não interessa aos americanos, e os esportes norte-americanos não interessam ao mundo.
Nesse curioso ponto em que falha a hegemonia do imaginário americano é que aparece, intrigantemente, o Brasil.

FOLHA - Quais as diferenças principais entre o futebol atual e aquele dos tempos do rei Pelé?
WISNIK
- A fama de Pelé ganhou o planeta como uma lenda viva sem logomarca. É o primeiro mito esportivo realmente planetário e o último sem marketing. Não se elegia, como agora se faz, o "número um" do mundo (cilada em que têm caído todos os eleitos). Os jogos eram mais francos, e as defesas, mais abertas.
De lá para cá, cresceu o princípio de "otimização do rendimento", vedetizou-se a figura do técnico, turbinou-se a preparação atlética, cerrou-se a concorrência em todos os níveis, uniformizaram-se muito os estilos de jogo e banhou-se tudo em publicidade. É claro que há uma perda de inocência, de encanto e de graça. A diferença brasileira também não tem o mesmo lugar. Quem ler o livro verá, no entanto, que não me coloco na posição do sentimentalismo nostálgico, nem na do crítico que vê de cima e de fora. Procuro ver de dentro e de fora.

FOLHA - Ao explorar, no capítulo mais teórico do livro, uma correlação entre Machado de Assis e Pelé, você afirma que a promessa de felicidade brasileira só se completará com uma segunda abolição da desigualdade e com a cura do dispositivo doentio segundo o qual o país é receita de felicidade ou fracasso sem saída. Você poderia identificar os atores e motivos desse Fla-Flu?
WISNIK
- Alguns podem pensar que eu estou barateando a literatura ao fazer um contraponto entre Machado de Assis e Pelé. Mas eu, que sou professor de literatura, considero essa relação, feita na parte final do livro, como uma provocação contra este país definitivamente iletrado em que nós estamos nos transformando.
A literatura, a música e o futebol são instâncias incontornáveis para entender o Brasil que "não é para principiantes", como dizia Tom Jobim. Machado é o ponto de chegada da formação da literatura brasileira, e Pelé é o ponto de chegada da formação do futebol brasileiro. Os dois, mais João Gilberto, são as figuras únicas, todas as três enigmáticas e quase inabordáveis, do salto espantoso que acontece no momento em que o processo formativo se completa nas três frentes.
Por meio de algo que neles ganha forma a partir da experiência brasileira, mas que na experiência brasileira não se completa, o Brasil aparece como melhor e pior do que ele mesmo. O futebol realiza a democracia racial que o Brasil não realiza. A agudeza e a atualidade antecipatória que a obra de Machado realiza paira sobre a viciosa incapacidade de mudar que ele mesmo acusa no país.
A ótica machadiana é a da negatividade: o raio-X irônico sobre a nossa síndrome de fuga para o imaginário e o conseqüente tombo no real. As Copas de 1950 e a de 2006, cada uma a seu modo e a seu tempo, por exemplo, podem ser vistas como episódios crônicos de tipo machadiano. O emplasto Brás Cubas é de certa maneira a fórmula disso: a panacéia universal que curaria a humanidade, mas que mata seu inventor antes que ele a invente.
O futebol brasileiro, no entanto, resultou numa espécie de emplasto Brás Cubas que deu certo em escala universal: "O alívio da nossa melancólica humanidade", reconhecido como tal em todos os quadrantes do planeta. Juntando o veneno e o remédio, ficamos numa gangorra infantil entre o tudo e o nada que é bem nossa conhecida. Isso está na relação ciclotímica da torcida com a seleção brasileira, na oscilação permanente entre deslumbramento e pessimismo que rege a avaliação do país, e na divisão entre a cegueira com que nos entregamos ao futebol e a posição altiva com que o "crítico" o desqualifica. Sair dessa síndrome é a condição imaterial de qualquer mudança. A condição material é a abolição da desigualdade campeã mundial.

FOLHA - No livro, parece que a idéia de veneno remédio ganha mais sentido com Gilberto Freyre. Qual a vantagem das teorias de Freyre sobre a sociologia uspiana na interpretação da cultura brasileira?
WISNIK
- Na parte final do livro procuro ver como os três grandes intérpretes clássicos, Caio Prado Junior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, encaixam-se no que seriam os respectivos pontos cegos e luminosos, gerando um tipo de transleitura.
Não considero, assim, nenhuma vantagem absoluta de um sobre os outros. O mais importante me parece ser a identificação dos paradigmas que eles fundam e representam, e como esses paradigmas se articulam nas suas diferenças.
Mas vantagens relativas de Gilberto Freyre me parecem importantes. Para quem escreve um livro sobre futebol, Freyre é aquele que tomou pioneiramente o futebol, no caso, a Copa de 1938, como a demonstração de suas teses de "Casa-Grande & Senzala" e "Sobrados e Mucambos". Sua obra pode ser pensada como um enfrentamento do famoso "complexo de vira-latas" de Nelson Rodrigues, a revirada dos estigmas da colonização numa saída original graças à "reciprocidade de culturas", a passagem do vira-lata ao vir-a-ser.


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