São Paulo, sábado, 17 de maio de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Bazar de extravios


"Greguerías" reúne fragmentos humorísticos do espanhol Ramón Gómez de la Serna, ícone das vanguardas

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"AQUELE QUE FALA do cosmos parece que fala de um grande bazar." "O sol é a panacéia universal: nos dá a vida, e também aos micróbios." "Nada retorna, mas tudo se parece."
Essas frases, cunhadas por uma versão gaiata (e moderna) dos antigos sofistas, pertencem ao conjunto das "Greguerías" do espanhol Ramón Gómez de la Serna (1888-1963) -autor pouco conhecido no Brasil, mas um mito das vanguardas decantado por Borges e Octavio Paz.
Nascido em Madri, Ramón (como preferia ser chamado) pertenceu à chamada Geração de 27, ao lado de nomes como Jorge Guillén, Rafael Alberti, Federico García Lorca e Dámaso Alonso.
Se essa tendência não forma um bloco homogêneo, reunindo uma poesia de feição lírico-popular e vertentes surrealistas, Ramón corresponde à "Geração do Inverossímil" ou "27 do humor" -como explica o poeta Adolfo Montejo Navas no prefácio da presente edição.
Ou seja, dentro da busca de sintonia entre a tradição barroca espanhola (a Geração de 27 surge no tricentenário da morte de Góngora) e as vanguardas européias, Ramón representa um espírito de insubordinação e ironia que se materializa poeticamente nas "greguerías".
O próprio escritor assim definiu esse gênero indefinível: "metáfora + humor = greguería". Coleção de milhares de frases epigramáticas, iluminações e chistes dos quais a edição brasileira nos dá generosa amostragem, as "greguerías" se assemelham à tradição dos aforismos e das máximas. O elemento que as distingue, porém, é o faro para o insólito, para as estranhas relações entre seres vivos e coisas inanimadas, entre o ínfimo e o cósmico, o palpável e o abstrato.
Lidas individualmente, não passam de anotações jocosas de um observador de disparates ("O antropófago é o consumidor que come o consumidor"). Ao colecionar meditações como quem junta bagatelas, porém, Ramón Gómez de la Serna compõe um caleidoscópio dominado pelo princípio da analogia ("Os arcos de triunfo são elefantes petrificados").

Sentidos ocultos
Como observa Montejo Navas, as "greguerías" caminham na mão contrária da reificação, da conversão do existente em mercadoria. Ao falar de simples utensílios ou de situações banais, Ramón desentranha sentidos e relações de identidade ocultos pela engrenagem histórica e pela linguagem instrumental.
Em "greguerías" como "o crocodilo é um sapato desmanchado" ou "tartaruga: sapato do tempo", por exemplo, há por trás dessas imagens insólitas uma inversão da ordem lógica, explicitando como a natureza foi submetida ao utilitarismo e ao pensamento abstrato -aos quais Ramón contrapõe suas fábulas oníricas: "O sonho é um depósito de objetos extraviados".


GREGUERÍAS
Autor: Ramón Gómez de la Serna
Tradução: Vanderley Mendonça
Editora: Amauta
Quanto: R$ 25 (80 págs.)
Avaliação: ótimo



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