São Paulo, Segunda-feira, 17 de Maio de 1999
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FERNANDO GABEIRA

As razões do enfermeiro que matava pacientes

Assassinatos em série acontecem muito nos Estados Unidos e quase sempre revelam criminosos com problemas: neuróticos de guerra, maníacos sexuais, traumatizados com infância violenta, os autores são sempre um convite à psicologia, à caça das razões ocultas de tantas mortes.
O enfermeiro Edson Izidoro Guimarães representa uma novidade nessa galeria. Ao que tudo indica, ele matou tranqüilamente, porque ganharia comissão das funerárias, um motivo bem prosaico para uma série de crimes.
O fato de ter, com sua calma, assassinado todas as tentativas de psicologização de seus crimes abriu caminho para que eu pudesse ver essa tragédia carioca sob um outro ponto de vista.
No momento em que li a reportagem sobre Edson, estava no sul preparando um debate. Para fazer meu discurso tinha de ler alguns textos do filósofo canadense Charles Taylor. Parei num trecho em que ele afirma que os seres humanos não conseguem deixar de ter uma idéia qualquer de valor intrínseco nas suas reflexões morais. Essa atitude faz parte, segundo ele, da gramática humana: a atribuição de valores pelo sujeito.
Se acontece assim, deixando de lado ocultas causas psicológicas, como explicar os crimes de Edson? Algum elo se perdeu na sua gramática e, interessante, como observado, assim vemos que seu gesto tem pontos comuns com outros assassinatos em massa.
Para justificar o desligamento dos aparelhos, as injeções letais ou mesmo a asfixia dos pacientes na UTI, ele afirma que estavam praticamente mortos. Já estavam condenados e seu gesto apenas consumou a vontade divina de levá-los para outros planos.
Algumas horas depois, a televisão mostrava a história de um fuzilamento de mendigos, alguns fumadores de crack, na periferia de São Paulo. A matéria dizia que o suspeito do fuzilamento era um traficante. Mas como explicar o fuzilamento de usuários de droga por um traficante. Falta de pagamento? Mas eram mendigos; eles não tinham dinheiro nem crédito.
O interessante é que também, de certa forma, estavam condenados. A pobreza e uso de drogas pesadas iam acabar matando-os. Daí a possibilidade de os assassinos pensarem a unidade do bem dentro da própria idéia de matar.
Antes de entrar em outros pontos, é importante voltar atrás, aos grandes assassinatos em massa, como os da conquista colonial, por exemplo. Naquela época, ser ou não ser cristão era fundamental. Os índios não tinham alma, e essa ausência de alma tornava a morte um acidente natural, como a morte de uma planta ou de um bicho. Houve gente, como Las Casas, que se insurgiu contra essa matança, mas sua voz isolada acabou ecoando pelos séculos seguintes, como se nos indicasse um caminho para entender a capacidade da raça humana de matar, seja numa limpeza étnica, seja num míope bombardeio.
Quando se defrontou com a possibilidade dos crimes, Edson estava também se defrontando com o imponderável.
Tinha de pesar, de um lado, as possíveis comissões, de outro as vidas humanas que seriam encurtadas. Se ele se convencesse de que estavam mais mortos do que vivos, que abreviaria seu sofrimento, poderia então se dedicar a sua liquidação.
Mesmo assim, ainda na entrevista, Edson afirmou que pretendia matar pacientes apenas por algum tempo. Assim que sua situação financeira se organizasse, ele voltaria a ser um enfermeiro como os outros.
O grande passo para o crime foi dado quando ele decidiu que as pessoas não tinham cura e iria abreviar seu sofrimento. Foi o escorregão gramatical. A condená-los sem elementos científicos, ele simplificou suas opções posteriores, tornando-as operações semelhantes às escolhas morais que fazemos no nosso cotidiano.
Lembro-me de tê-lo visto duas vezes dizendo que não era louco nem monstro. Acho que tem razão. Ela é uma pessoa articulada, no sentido de que busca uma base moral para seus gestos. Como eram articulados os matadores nos campos de concentração, que também tinham uma justificativa para abrir o gás.
Concordo com a idéia de que a atribuição de valores constitui a gramática humana. Resta saber como se constrói, passo a passo, uma base moral para o crime.
O enfermeiro carioca ainda deixou bem claro que seus crimes eram provisórios. Só tinham validade enquanto perdurasse sua crise financeira. Depois disso, iria parar de matar os pacientes, deixar que morressem, naturalmente, cada um no seu tempo.
Isso revela que seu esquema mental também era provisório e só foi possível montá-lo porque precisava de dinheiro. Ao contrário dos assassinatos em série que matam por razões emocionais ou sexuais, Edson limitou-se a realizar um trabalho extra. Pode ser que, num certo sentido, seja bem mais moderno que os outros, vítimas de conflitos insuperáveis e comandados por uma obscura voz interior.
Nos outros, alguma coisa se desintegra no inconsciente; em Edson é a própria razão que se desdobra para lhe dar uma temporária licença de matar.


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