|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERNANDO GABEIRA
As razões do enfermeiro que matava pacientes
Assassinatos em série acontecem muito nos Estados Unidos
e quase sempre revelam criminosos com problemas: neuróticos de guerra, maníacos sexuais, traumatizados com infância violenta, os autores são
sempre um convite à psicologia, à caça das razões ocultas
de tantas mortes.
O enfermeiro Edson Izidoro
Guimarães representa uma novidade nessa galeria. Ao que
tudo indica, ele matou tranqüilamente, porque ganharia
comissão das funerárias, um
motivo bem prosaico para uma
série de crimes.
O fato de ter, com sua calma,
assassinado todas as tentativas
de psicologização de seus crimes abriu caminho para que eu
pudesse ver essa tragédia carioca sob um outro ponto de vista.
No momento em que li a reportagem sobre Edson, estava
no sul preparando um debate.
Para fazer meu discurso tinha
de ler alguns textos do filósofo
canadense Charles Taylor. Parei num trecho em que ele afirma que os seres humanos não
conseguem deixar de ter uma
idéia qualquer de valor intrínseco nas suas reflexões morais.
Essa atitude faz parte, segundo
ele, da gramática humana: a
atribuição de valores pelo sujeito.
Se acontece assim, deixando
de lado ocultas causas psicológicas, como explicar os crimes
de Edson? Algum elo se perdeu
na sua gramática e, interessante, como observado, assim vemos que seu gesto tem pontos
comuns com outros assassinatos em massa.
Para justificar o desligamento dos aparelhos, as injeções letais ou mesmo a asfixia dos pacientes na UTI, ele afirma que
estavam praticamente mortos.
Já estavam condenados e seu
gesto apenas consumou a vontade divina de levá-los para
outros planos.
Algumas horas depois, a televisão mostrava a história de
um fuzilamento de mendigos,
alguns fumadores de crack, na
periferia de São Paulo. A matéria dizia que o suspeito do fuzilamento era um traficante.
Mas como explicar o fuzilamento de usuários de droga por
um traficante. Falta de pagamento? Mas eram mendigos;
eles não tinham dinheiro nem
crédito.
O interessante é que também,
de certa forma, estavam condenados. A pobreza e uso de drogas pesadas iam acabar matando-os. Daí a possibilidade
de os assassinos pensarem a
unidade do bem dentro da própria idéia de matar.
Antes de entrar em outros
pontos, é importante voltar
atrás, aos grandes assassinatos
em massa, como os da conquista colonial, por exemplo. Naquela época, ser ou não ser cristão era fundamental. Os índios
não tinham alma, e essa ausência de alma tornava a morte
um acidente natural, como a
morte de uma planta ou de um
bicho. Houve gente, como Las
Casas, que se insurgiu contra
essa matança, mas sua voz isolada acabou ecoando pelos séculos seguintes, como se nos indicasse um caminho para entender a capacidade da raça
humana de matar, seja numa
limpeza étnica, seja num míope bombardeio.
Quando se defrontou com a
possibilidade dos crimes, Edson estava também se defrontando com o imponderável.
Tinha de pesar, de um lado,
as possíveis comissões, de outro
as vidas humanas que seriam
encurtadas. Se ele se convencesse de que estavam mais mortos do que vivos, que abreviaria
seu sofrimento, poderia então
se dedicar a sua liquidação.
Mesmo assim, ainda na entrevista, Edson afirmou que
pretendia matar pacientes apenas por algum tempo. Assim
que sua situação financeira se
organizasse, ele voltaria a ser
um enfermeiro como os outros.
O grande passo para o crime
foi dado quando ele decidiu
que as pessoas não tinham cura
e iria abreviar seu sofrimento.
Foi o escorregão gramatical. A
condená-los sem elementos
científicos, ele simplificou suas
opções posteriores, tornando-as operações semelhantes às escolhas morais que fazemos no
nosso cotidiano.
Lembro-me de tê-lo visto
duas vezes dizendo que não era
louco nem monstro. Acho que
tem razão. Ela é uma pessoa
articulada, no sentido de que
busca uma base moral para
seus gestos. Como eram articulados os matadores nos campos
de concentração, que também
tinham uma justificativa para
abrir o gás.
Concordo com a idéia de que
a atribuição de valores constitui a gramática humana. Resta
saber como se constrói, passo a
passo, uma base moral para o
crime.
O enfermeiro carioca ainda
deixou bem claro que seus crimes eram provisórios. Só tinham validade enquanto perdurasse sua crise financeira.
Depois disso, iria parar de matar os pacientes, deixar que
morressem, naturalmente, cada um no seu tempo.
Isso revela que seu esquema
mental também era provisório
e só foi possível montá-lo porque precisava de dinheiro. Ao
contrário dos assassinatos em
série que matam por razões
emocionais ou sexuais, Edson
limitou-se a realizar um trabalho extra. Pode ser que, num
certo sentido, seja bem mais
moderno que os outros, vítimas
de conflitos insuperáveis e comandados por uma obscura
voz interior.
Nos outros, alguma coisa se
desintegra no inconsciente; em
Edson é a própria razão que se
desdobra para lhe dar uma
temporária licença de matar.
Texto Anterior: Cinema: Brasília tem festival de novos filmes italianos Próximo Texto: Música: CD dos Mutantes chega só a ouvidos ianques Índice
|