São Paulo, sábado, 17 de junho de 2000


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DRAUZIO VARELLA

Mau exemplo

Há duas semanas entregamos o sétimo número do "Vira Lata", um gibi educativo, na Casa de Detenção de São Paulo. A distribuição foi feita por um grupo de voluntários, de cela em cela, à noite, depois que os presos estavam trancados, porque a tarefa é impossível com eles soltos pelas galerias.
Quando estávamos no quarto andar do pavilhão 5, o mais lotado da cadeia, um rapaz me chamou pela pequena abertura da porta do xadrez, conhecida como guichê. A galeria estava mal iluminada, mal pude discernir seu rosto no retângulo do guichê. De dentro da cela, vinha um cheiro quente de comida e aglomeração humana.
O rapaz estava tomando medicação para tuberculose e queria saber se estava na hora de interromper o tratamento. Expliquei a ele o que devia fazer e perguntei quantos presos havia no xadrez. Ele saiu de lado para que eu pudesse ver: contei seis homens num espaço de três metros por dois. À esquerda da porta ficava o vaso sanitário, parcialmente escondido atrás de uma cortininha de tecido ordinário. Acima dele, um cano na parede para o banho diário. Do outro lado, a pia e uma prateleira sobre a qual repousava o fogareiro com a panela de feijão.
Dos pregos fincados na parede encardida pendiam sacos plásticos com os pertences individuais. Sobre a pia, um espelhinho com o distintivo do Corinthians e uma imagem do Coração de Jesus.
Junto à parede oposta à porta estava ligada a TV. Um político paulista que fez fama nacional pelo envolvimento repetido em obras públicas superfaturadas fazia uso do tempo de que os partidos dispõem no horário nobre.
Aconteceu, então, o seguinte diálogo entre mim e o preso, um rapaz, conhecido como João Pessoa por ter nascido na capital da Paraíba, condenado a oito anos e três meses por dois assaltos à mão armada.
-Ainda cabe uma TV aí dentro?
-É a única distração da noite, doutor. Apesar de a gente ter de aguentar esses políticos falando.
-E logo esse!
-Doutor, o senhor acha que está certo, nós aqui nesse veneno, e essa pessoa que roubou sozinho mais que o Carandiru inteiro, todo bonito, de terno e gravata, falando na televisão?
Fui para casa pensando na incoerência dos políticos que criticam o baixo nível educativo da televisão brasileira. Quando a legislação lhes garante a audiência preciosa do horário nobre, que uso fazem eles desse privilégio? Sequer conseguem barrar o acesso às câmeras de corruptos notórios que servem de mau exemplo até para assaltantes presos no Carandiru.
Os políticos sérios deveriam pressionar a direção de seus partidos para a utilização do horário gratuito no rádio e na TV de modo a atender aos interesses da população. Num país extenso como o nosso, é conduta inaceitável desperdiçar em promoções pessoais o tempo que as redes de emissoras colocam a serviço das cúpulas partidárias, quando poderiam transmitir mensagens educativas capazes de mudar o destino de muita gente que não teve acesso às melhores escolas.
Por exemplo, insistir que as mães precisam lavar as mãos com água e sabão antes de cuidar dos bebês pode diminuir a mortalidade infantil por diarréia. Uma campanha nacional para ajudar fumantes a abandonar o cigarro tem potencial para reduzir a incidência de câncer, de ataques cardíacos, de derrames cerebrais, de enfisema e de outras doenças que atingem homens e mulheres na idade adulta e deixam crianças órfãs.
Se o horário político mostrasse o valor nutritivo e calórico dos principais alimentos de cada região, estaria colaborando ativamente para prevenir e controlar problemas como obesidade, hipertensão, diabetes e doenças cardiovasculares.
Se educasse para o trânsito, talvez não morresse tanta gente nas estradas. Se orientasse os adolescentes em relação às práticas de sexo seguro, teríamos menos doenças sexualmente transmissíveis e menos menores abandonados.
Exemplos como esses não faltam no campo da saúde, da educação e na divulgação da cultura regional, tão rica no Brasil. Em vez de usar o talento de nossos especialistas em marketing político para criar novos penteados, modelos de óculos e frases de efeito, os partidos deveriam pedir a colaboração deles para elaborar estratégias de abordagem educativa de temas como esses e muitos outros.
Dessa maneira, em vez do palavreado demagógico, estariam investindo na qualidade de vida da população. Quanto mais criativos fossem, maior reconhecimento receberiam dos eleitores.
Vale a pena tentar, mesmo porque, convenhamos, na maioria dos lares brasileiros as pessoas saem da sala ou tiram o som da TV assim que começa o horário político.


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