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DRAUZIO VARELLA
Mau exemplo
Há duas semanas entregamos o sétimo número do
"Vira Lata", um gibi educativo,
na Casa de Detenção de São Paulo. A distribuição foi feita por um
grupo de voluntários, de cela em
cela, à noite, depois que os presos
estavam trancados, porque a tarefa é impossível com eles soltos
pelas galerias.
Quando estávamos no quarto
andar do pavilhão 5, o mais lotado da cadeia, um rapaz me chamou pela pequena abertura da
porta do xadrez, conhecida como
guichê. A galeria estava mal iluminada, mal pude discernir seu
rosto no retângulo do guichê. De
dentro da cela, vinha um cheiro
quente de comida e aglomeração
humana.
O rapaz estava tomando medicação para tuberculose e queria
saber se estava na hora de interromper o tratamento. Expliquei a
ele o que devia fazer e perguntei
quantos presos havia no xadrez.
Ele saiu de lado para que eu pudesse ver: contei seis homens num
espaço de três metros por dois. À
esquerda da porta ficava o vaso
sanitário, parcialmente escondido atrás de uma cortininha de tecido ordinário. Acima dele, um
cano na parede para o banho diário. Do outro lado, a pia e uma
prateleira sobre a qual repousava
o fogareiro com a panela de feijão.
Dos pregos fincados na parede
encardida pendiam sacos plásticos com os pertences individuais.
Sobre a pia, um espelhinho com o
distintivo do Corinthians e uma
imagem do Coração de Jesus.
Junto à parede oposta à porta
estava ligada a TV. Um político
paulista que fez fama nacional
pelo envolvimento repetido em
obras públicas superfaturadas fazia uso do tempo de que os partidos dispõem no horário nobre.
Aconteceu, então, o seguinte
diálogo entre mim e o preso, um
rapaz, conhecido como João Pessoa por ter nascido na capital da
Paraíba, condenado a oito anos e
três meses por dois assaltos à mão
armada.
-Ainda cabe uma TV aí dentro?
-É a única distração da noite,
doutor. Apesar de a gente ter de
aguentar esses políticos falando.
-E logo esse!
-Doutor, o senhor acha que está certo, nós aqui nesse veneno, e
essa pessoa que roubou sozinho
mais que o Carandiru inteiro, todo bonito, de terno e gravata, falando na televisão?
Fui para casa pensando na incoerência dos políticos que criticam o baixo nível educativo da
televisão brasileira. Quando a legislação lhes garante a audiência
preciosa do horário nobre, que
uso fazem eles desse privilégio?
Sequer conseguem barrar o acesso às câmeras de corruptos notórios que servem de mau exemplo
até para assaltantes presos no Carandiru.
Os políticos sérios deveriam
pressionar a direção de seus partidos para a utilização do horário
gratuito no rádio e na TV de modo a atender aos interesses da população. Num país extenso como
o nosso, é conduta inaceitável
desperdiçar em promoções pessoais o tempo que as redes de
emissoras colocam a serviço das
cúpulas partidárias, quando poderiam transmitir mensagens
educativas capazes de mudar o
destino de muita gente que não
teve acesso às melhores escolas.
Por exemplo, insistir que as
mães precisam lavar as mãos com
água e sabão antes de cuidar dos
bebês pode diminuir a mortalidade infantil por diarréia. Uma
campanha nacional para ajudar
fumantes a abandonar o cigarro
tem potencial para reduzir a incidência de câncer, de ataques cardíacos, de derrames cerebrais, de
enfisema e de outras doenças que
atingem homens e mulheres na
idade adulta e deixam crianças
órfãs.
Se o horário político mostrasse o
valor nutritivo e calórico dos
principais alimentos de cada região, estaria colaborando ativamente para prevenir e controlar
problemas como obesidade, hipertensão, diabetes e doenças cardiovasculares.
Se educasse para o trânsito, talvez não morresse tanta gente nas
estradas. Se orientasse os adolescentes em relação às práticas de
sexo seguro, teríamos menos
doenças sexualmente transmissíveis e menos menores abandonados.
Exemplos como esses não faltam no campo da saúde, da educação e na divulgação da cultura
regional, tão rica no Brasil. Em
vez de usar o talento de nossos especialistas em marketing político
para criar novos penteados, modelos de óculos e frases de efeito,
os partidos deveriam pedir a colaboração deles para elaborar estratégias de abordagem educativa de temas como esses e muitos
outros.
Dessa maneira, em vez do palavreado demagógico, estariam investindo na qualidade de vida da
população. Quanto mais criativos
fossem, maior reconhecimento receberiam dos eleitores.
Vale a pena tentar, mesmo porque, convenhamos, na maioria
dos lares brasileiros as pessoas
saem da sala ou tiram o som da
TV assim que começa o horário
político.
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