São Paulo, domingo, 17 de junho de 2007

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BIA ABRAMO

"A Pedra do Reino" e a inefável qualidade


Mais do que mítica, a versão de Carvalho para o romance de Ariano Suassuna é alegórica

ORA, NÃO dá para discordar muito da crítica de Cássio Starling Carlos sobre a "A Pedra do Reino" (Ilustrada, 10 de junho). Para o crítico, a microssérie de Luiz Fernando Carvalho representa uma ruptura no modo de usar a literatura na TV. A obra literária não estaria simplesmente mais emprestando seu "sinal de nobreza" à obra televisiva, ou seja, funcionando como avalizadora de um certo padrão de qualidade, mas passaria a fornecer outras e diversas estratégias narrativas. Além disso, a partir de uma concepção artesanal de produção, capaz de imprimir uma "singularidade expressiva", conseguiria "desafiar de dentro os códigos da televisão".
"A Pedra do Reino" é, de fato, uma obra televisiva desafiadora, que se constitui a partir sobretudo de negativas: não-linear na condução do roteiro, não-naturalista na interpretação, não-convencional em termos de cenografia e direção de arte. Todas essas negativas se entrelaçam com uma exuberância visual e uma intensidade dramática muito raramente vistas (tendendo fácil ao "quase nunca") na TV.
Mais do que mítica, a versão de Carvalho para o romance de Ariano Suassuna é profundamente alegórica -e, nesse sentido, seu sertão de deuses e diabos se aproxima do dos filmes de Glauber Rocha. Ao armorial, algo suave na quase idealização do popular regional, se sobrepôs uma camada de simbolismos mais agudos -e não distantes, inclusive, do cinema que vem vindo de Pernambuco na última década.
E, para além de todas as referências e cruzamentos, Carvalho firma-se como um diretor original, capaz de criar imagens de enorme beleza e de tirar o espectador de seu conforto e de sua segurança. É toda áspera a microssérie, no sentido de não dar trégua à atenção, mesmo quando deixa emergir o humor de Suassuna, quando deixa escapar algum lirismo. E essa aspereza que impede a distração a ponto de causar incômodo -o espectador de TV, qualquer um, é o menos afeito a isso- é justamente aquilo que a TV tenta ao máximo evitar.
Há, entretanto, em Carvalho, ainda uma reverência excessiva à obra literária. Não a esta que está sendo adaptada, mas, digamos, à profundidade da literatura. É como se, ao adaptar, o diretor ficasse imbuído de uma dificuldade advinda do livro -e isso forçaria escolhas estéticas que, no fim, parecem mais informar sobre a capacidade do diretor em ser complicado do que, de fato, contribuir para a narrativa.
O problema, aqui, não é afastar o espectador, mas perpetuar uma aura de distância da obra literária.

biaabramo.tv@uol.com.br


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