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RÉPLICA
Resenha "crítica" engana o leitor e revela preconceitos
FRANCISCO CARLOS TEIXEIRA DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Como leitor assíduo deste jornal, fiquei chocado com os pré-juízos e pré-conceitos contidos na
resenha [Ilustrada, 10/7], bastante superficial e politicamente motivada, feita por Marcos Guterman ao livro por mim organizado, "Enciclopédia de Guerras e
Revoluções do Século 20".
Fica bastante claro que qualquer crítica que pareça levemente
"de esquerda" contida nos verbetes da "Enciclopédia" torna-se
merecedora de uma saraivada de
arengas de péssimo humor -como aparece quando o "crítico"
diz desconhecer por que a via democrática e pacífica de transição
ao socialismo no Chile (que colocava por terra a "via soviética")
seja chamada de "Revolução".
O melhor exemplo, contudo, é a
implicância personalística -logo, de gosto altamente pessoal-
contra a epígrafe da obra, um
clássico pacifista dos anos 60, de
Pink Floyd. Que me recorde, é a
primeira vez que um "crítico" se
revolta com tamanho mau humor
contra uma epígrafe...
Em outros momentos o autor
erra, erra redondamente, quando
diz que não há tradição de conciliação partidária na história dos
Estados Unidos. Ora, há uma boa
tradição de convites para senadores e deputados do partido adversário para comporem o governo
de uma administração nova.
Também erra quando afirma
não ter provas sobre a participação de Kissinger no golpe de Pinochet -os documentos foram
publicados e estão abertos no National Archives. Erra ainda o "crítico" quando afirma a inexistência de qualquer tratamento para o
tema "Darwinismo social". Na
verdade, temos dois verbetes que
discutem o tema: Eugenia e Etologia (e Guerra), bastava ler com
calma, sem má vontade previamente armada.
Cinema
Também nos parece implicância o ataque gratuito contra a presença do cinema, em vários verbetes, na "Enciclopédia": o cinema é a grande "cara" do século 20,
a cultura e o entretenimento de
massas por excelência, move milhões em recursos, movimenta
multidões, impõe moda e crítica
de costumes, influencia politicamente as pessoas, gera "monstros
sagrados" que ocupam o noticiário de todas as TVs do mundo, como há pouco na morte de Marlon
Brando. Só posso lamentar que o
"crítico" não goste de cinema.
Nem por isso teria um "parti
pris" contra sua posição ou o consideraria inculto! A arremetida
contra o "melodrama" particularmente revela, aí sim, pobreza cultural e histórica sobre a América
Latina.
A autora, cineasta e historiadora
argentina, com livros publicados
na Argentina, México, Cuba e
EUA, faz uma bela análise sobre a
questão "das lágrimas" na tradição dramática latino-americana,
vigente desde o culto de Evita até
as produções mexicanas, um
"hit" em todo o continente.
Enganos
Em outros momentos, simplesmente o "crítico" engana o leitor:
esquece de dizer quantas linhas
tem o verbete "Guerra do Bacalhau" -nove, em um livro de
mais de mil páginas!- e perde a
chance de ver a aparição do inusitado na história ao insistir em
passar ao leitor a impressão de erro de falta de dimensionamento.
A questão do Holocausto, por
sua vez, é tratada amplamente,
com vários autores e fontes documentais e teóricas modernas,
contemplando três amplos verbetes. Não citar um autor, no caso
Norbert Elias, traduz opções teóricas e metodológicas dos pesquisadores, inclusive os autores judeus que escreveram na Enciclopédia... -que no caso se dedicam
há anos, nos arquivos de Israel e
da Alemanha, a trabalhar sobre o
tema.
Por exemplo, a idéia central de
Elias sobre o demônio da destruição pairando sobre as ruínas de
Berlim -uma belíssima imagem- já está no livro de Franz
Neumann exatamente sobre "Behemoth", amplamente citado nos
verbetes de fascismo e de fundamentalismo. Como Neumann é
um autor não traduzido, típico da
tradição alemã em que se insere
Elias, e que não se transformou
em moda intelectual, o "crítico"
não o conhece... e, portanto, não
sabe a qual tradição e fonte teórica
o próprio Norbert Elias se reportou ao escrever.
Fiquei ainda com outra dúvida:
por que o "crítico" não gosta de
"Banhos de Mar"? Será que, por
ser de São Paulo, muito ocupado
no seu escritório, nunca percebeu
o fenômeno social e econômico
que são os "banhos de mar"? Cidades inteiras vivem disso, da
França, Itália, Espanha, Portugal
até o México e o Caribe.
Como bom jornalista que é,
com certeza sabe que num domingo de sol 1 milhão de pessoas
se movem dezenas de quilômetros no Rio de Janeiro para ir aos
"banhos de mar", criando tensões
sociais, moda -que se exporta
para todo o mundo, gerando milhares de empregos-, permitindo toda uma gama de atividades
econômicas, como os hotéis de
Acapulco ou do próprio Rio de Janeiro. Acho que o crítico não gosta de sol, deve ser isso.
Numa obra de 264 colaboradores, com mais de mil páginas, há
de haver desacertos, posso entender e agradecer a quem apontá-los. Porém, trazer questões de
gosto pessoal, manias intelectuais
e posições políticas pessoais para
criticar um esforço intelectual válido não parece justo. Quero reafirmar a palavra: justo, quer dizer
correto, equânime.
Nada foi dito sobre verbetes básicos sobre fascismo, genocídio,
Guerra Fria, terrorismo, al-Qaeda, comportamento social, guerras preemptivas e guerras assimétricas, temas tratados pela primeira vez em português, quando ainda são discutidos e causam dor e
mortes em todo o mundo.
Enfim, cerca de 56 dos 264 autores da "Enciclopédia" são leitores
diários da Folha, trazemo-la para
sala de aula para discuti-la com
nossos alunos como exemplo de
bom jornalismo, de alto nível profissional e seriedade. Como ficaremos agora? O que aconteceu?
Em que nervo exposto do senhor
Guterman nosso trabalho desavisadamente tocou? Será que em
1.008 páginas, em dezenas de livros e de autores citados nada há
de bom?
Todos os especialistas, com
anos e anos de pesquisa e dezenas
de trabalhos publicados estão errados e só o poderoso senhor Guterman está certo? Como historiador temo enormemente a emergência dos infalíveis, que tudo e
todos pode julgar, fonte das catástrofes do século 20.
Francisco Carlos Teixeira da Silva é
professor titular de história moderna e
contemporânea da Universidade do Brasil/UFRJ
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