São Paulo, sábado, 17 de julho de 2004

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RÉPLICA

Resenha "crítica" engana o leitor e revela preconceitos

FRANCISCO CARLOS TEIXEIRA DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como leitor assíduo deste jornal, fiquei chocado com os pré-juízos e pré-conceitos contidos na resenha [Ilustrada, 10/7], bastante superficial e politicamente motivada, feita por Marcos Guterman ao livro por mim organizado, "Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século 20".
Fica bastante claro que qualquer crítica que pareça levemente "de esquerda" contida nos verbetes da "Enciclopédia" torna-se merecedora de uma saraivada de arengas de péssimo humor -como aparece quando o "crítico" diz desconhecer por que a via democrática e pacífica de transição ao socialismo no Chile (que colocava por terra a "via soviética") seja chamada de "Revolução".
O melhor exemplo, contudo, é a implicância personalística -logo, de gosto altamente pessoal- contra a epígrafe da obra, um clássico pacifista dos anos 60, de Pink Floyd. Que me recorde, é a primeira vez que um "crítico" se revolta com tamanho mau humor contra uma epígrafe...
Em outros momentos o autor erra, erra redondamente, quando diz que não há tradição de conciliação partidária na história dos Estados Unidos. Ora, há uma boa tradição de convites para senadores e deputados do partido adversário para comporem o governo de uma administração nova.
Também erra quando afirma não ter provas sobre a participação de Kissinger no golpe de Pinochet -os documentos foram publicados e estão abertos no National Archives. Erra ainda o "crítico" quando afirma a inexistência de qualquer tratamento para o tema "Darwinismo social". Na verdade, temos dois verbetes que discutem o tema: Eugenia e Etologia (e Guerra), bastava ler com calma, sem má vontade previamente armada.

Cinema
Também nos parece implicância o ataque gratuito contra a presença do cinema, em vários verbetes, na "Enciclopédia": o cinema é a grande "cara" do século 20, a cultura e o entretenimento de massas por excelência, move milhões em recursos, movimenta multidões, impõe moda e crítica de costumes, influencia politicamente as pessoas, gera "monstros sagrados" que ocupam o noticiário de todas as TVs do mundo, como há pouco na morte de Marlon Brando. Só posso lamentar que o "crítico" não goste de cinema.
Nem por isso teria um "parti pris" contra sua posição ou o consideraria inculto! A arremetida contra o "melodrama" particularmente revela, aí sim, pobreza cultural e histórica sobre a América Latina.
A autora, cineasta e historiadora argentina, com livros publicados na Argentina, México, Cuba e EUA, faz uma bela análise sobre a questão "das lágrimas" na tradição dramática latino-americana, vigente desde o culto de Evita até as produções mexicanas, um "hit" em todo o continente.

Enganos
Em outros momentos, simplesmente o "crítico" engana o leitor: esquece de dizer quantas linhas tem o verbete "Guerra do Bacalhau" -nove, em um livro de mais de mil páginas!- e perde a chance de ver a aparição do inusitado na história ao insistir em passar ao leitor a impressão de erro de falta de dimensionamento.
A questão do Holocausto, por sua vez, é tratada amplamente, com vários autores e fontes documentais e teóricas modernas, contemplando três amplos verbetes. Não citar um autor, no caso Norbert Elias, traduz opções teóricas e metodológicas dos pesquisadores, inclusive os autores judeus que escreveram na Enciclopédia... -que no caso se dedicam há anos, nos arquivos de Israel e da Alemanha, a trabalhar sobre o tema.
Por exemplo, a idéia central de Elias sobre o demônio da destruição pairando sobre as ruínas de Berlim -uma belíssima imagem- já está no livro de Franz Neumann exatamente sobre "Behemoth", amplamente citado nos verbetes de fascismo e de fundamentalismo. Como Neumann é um autor não traduzido, típico da tradição alemã em que se insere Elias, e que não se transformou em moda intelectual, o "crítico" não o conhece... e, portanto, não sabe a qual tradição e fonte teórica o próprio Norbert Elias se reportou ao escrever.
Fiquei ainda com outra dúvida: por que o "crítico" não gosta de "Banhos de Mar"? Será que, por ser de São Paulo, muito ocupado no seu escritório, nunca percebeu o fenômeno social e econômico que são os "banhos de mar"? Cidades inteiras vivem disso, da França, Itália, Espanha, Portugal até o México e o Caribe.
Como bom jornalista que é, com certeza sabe que num domingo de sol 1 milhão de pessoas se movem dezenas de quilômetros no Rio de Janeiro para ir aos "banhos de mar", criando tensões sociais, moda -que se exporta para todo o mundo, gerando milhares de empregos-, permitindo toda uma gama de atividades econômicas, como os hotéis de Acapulco ou do próprio Rio de Janeiro. Acho que o crítico não gosta de sol, deve ser isso.
Numa obra de 264 colaboradores, com mais de mil páginas, há de haver desacertos, posso entender e agradecer a quem apontá-los. Porém, trazer questões de gosto pessoal, manias intelectuais e posições políticas pessoais para criticar um esforço intelectual válido não parece justo. Quero reafirmar a palavra: justo, quer dizer correto, equânime.
Nada foi dito sobre verbetes básicos sobre fascismo, genocídio, Guerra Fria, terrorismo, al-Qaeda, comportamento social, guerras preemptivas e guerras assimétricas, temas tratados pela primeira vez em português, quando ainda são discutidos e causam dor e mortes em todo o mundo.
Enfim, cerca de 56 dos 264 autores da "Enciclopédia" são leitores diários da Folha, trazemo-la para sala de aula para discuti-la com nossos alunos como exemplo de bom jornalismo, de alto nível profissional e seriedade. Como ficaremos agora? O que aconteceu? Em que nervo exposto do senhor Guterman nosso trabalho desavisadamente tocou? Será que em 1.008 páginas, em dezenas de livros e de autores citados nada há de bom?
Todos os especialistas, com anos e anos de pesquisa e dezenas de trabalhos publicados estão errados e só o poderoso senhor Guterman está certo? Como historiador temo enormemente a emergência dos infalíveis, que tudo e todos pode julgar, fonte das catástrofes do século 20.


Francisco Carlos Teixeira da Silva é professor titular de história moderna e contemporânea da Universidade do Brasil/UFRJ


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