São Paulo, segunda-feira, 17 de julho de 2006

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GUILHERME WISNIK

O híbrido rural-urbano


A disputa entre o campo e a cidade ganha interesse com a urbanização vertiginosa da crescente China atual

SE PARA Adam Smith a história humana é movida pela eterna disputa entre o campo e a cidade, para Marx, ao contrário, ela tenderia a uma abolição gradual da distinção entre ambos, "através de uma distribuição mais equânime da população na Terra". Essa oposição revela muito sobre o modo como o liberalismo e o comunismo se territorializam. E, também, aponta traços que de certa forma se tornaram marcantes na diferença entre as mentalidades ocidental e oriental.
Um dos lados, o ocidental, tem como arquétipo a Inglaterra: país que fez a Revolução Industrial e primeiro se urbanizou. Mas que, no entanto, manteve o campo como uma entidade existencial intocável, a salvo de qualquer contaminação da vida ruidosa da cidade. O outro lado, o oriental, remete às experiências de modernização soviética e principalmente chinesa, países com territórios imensos e uma longa tradição camponesa e que passaram por um processo acelerado de industrialização. Assim, se no primeiro caso o campo e a cidade são duas forças em oposição, no segundo tendem a formar um amálgama indiscernível, próximo àquilo que se chamou de "desurbanismo".
Essa discussão ganha interesse renovado à medida que a China hoje, sendo o país que mais cresce no mundo, se urbaniza vertiginosamente. E, na mesma proporção, parece ocidentalizar-se, quando, na verdade, finalmente atinge uma configuração territorial próxima àquela idealizada por Marx.
Formada por uma rede contínua de vilas recentemente promovidas a cidades, a vasta área do delta do rio Pérola é uma paisagem híbrida entre o rural e o urbano. Esse processo, absolutamente contemporâneo, resulta na verdade de uma combinação histórica singular.
Em primeiro lugar, do desprezo de Mao Tsé-tung pelas cidades e de sua política de industrialização do campo e controle férreo do crescimento urbano. E, em segundo, da política de abertura à economia de mercado a partir de zonas de exceção em torno dos enclaves ex-coloniais: Hong Kong e Macau, ambos situados no delta do Pérola.
Como resultado, toda uma paisagem de campos cultivados e casas dispersas, pontuada aqui e ali por chaminés de fábricas, se viu rapidamente exposta à voracidade do comércio e, logo, ao impulso da produção de bens de consumo variados. É claro que a população flutuante da região se multiplicou a cifras incalculáveis, e o território se suburbanizou a partir de rápidos e precários incrementos de infra-estrutura básica. Uma urbanização sem urbanidade, conduzida pelo capital globalizado sobre uma base comunista agrária, mas industrializada.
Quando Marx, em 1848, concebeu a sociedade comunista vivendo em híbridos rurais-urbanos, estava se opondo à concentração insalubre da população operária nos cortiços londrinos e procurando incorporar o idílio do campo à noção de lazer na cidade, como uma síntese entre tese e antítese. Hoje, para começar a compreender a atual conurbação chinesa de vilas-subúrbios sem centro urbano, precisamos dar novos saltos dialéticos.


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