São Paulo, terça-feira, 17 de julho de 2007

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BERNARDO CARVALHO

A imagem não diz não


A idéia de uma sociedade fundada na imagem não anuncia o melhor dos mundos

LOGO NO início do seu tratado sobre a escrita ocidental, a francesa Clarisse Herrenschmidt, lingüista do Instituto de Antropologia Social do Collège de France e especialista no Irã antigo, anterior ao islamismo, diz que seu livro não foi escrito com o objetivo de explicar o presente como o fim de uma história dos signos: ao contrário, estamos bem no meio do redemoinho, diante de uma "devastação semiológica", de uma nova revolução da escrita, sob a égide da informática.
"Les Trois Écritures - Langue, Nombre, Code" (as três escritas -língua, número, código), publicado há pouco mais de um mês na França, pela Gallimard, embora não chegue a nenhuma conclusão definitiva, conta, entre idéias iluminadas e surpreendentes, a história da escrita e de suas principais transformações desde o seu nascimento como instrumento de poder nas cidades-Estado da Mesopotâmia (atual Iraque) e do sul do Irã, por volta de 3300 a.C., até a invenção do código dos computadores em meados do século 20 e a propagação da internet a partir dos Estados Unidos.
Cada forma de escrita estabelece uma relação diferente entre quem a usa e o mundo. Por exemplo: na origem, as escritas semíticas, sem vogais, como o hebraico, punham o leitor-intérprete no lugar do profeta, emprestando sua voz às palavras de Deus. A linguagem era de origem divina. Deus retinha as vogais, que representam o som em sua forma gráfica. A escrita era a palavra de Deus, uma forma de enigma a ser interpretado. Nas escritas consonantes (sem vogais), o mundo e a linguagem fazem parte da mesma criação divina. Com a introdução das vogais no alfabeto grego, as palavras e as coisas se separam. A palavra de Deus não pode ser arbitrária, mas a dos homens pode. A escrita passa a materializar a voz dos homens. O ponto de vista passa a ser do sujeito, daquele que fala.
Em entrevista ao jornal "Libération", Herrenschmidt diz que esses dois modos de escrita correspondem a diferentes modos de pensar. A filosofia ocidental, por exemplo, se desenvolveu dando a palavra ao sujeito, enquanto na filosofia árabe isso é bem menos freqüente.
A escrita numérica em sua forma monetária aritmética, com a circulação de moedas cunhadas desde a Grécia do século 7º a.C., também teve um papel decisivo, sobretudo no Ocidente, disseminando o uso dos números pela sociedade e permitindo o desenvolvimento das ciências e das técnicas.
A escrita tornou visível o invisível. A idéia pode ser óbvia para um lingüista, mas fascina o leitor leigo a cada reaparição ao longo do livro. Nos primórdios, a escrita tornou Deus e a linguagem (o sopro dos corpos) simultaneamente visíveis e presentes. "Os antigos sentiram que a escrita tocava o invisível. Na realidade, a linguagem, ela própria invisível, mostra o que está fora da visão, nomeia o invisível. A escrita, que capta a linguagem, faz ver o invisível e se torna o lugar de encontro entre os vivos visíveis e os eternos invisíveis", escreve Herrenschmidt. A escrita representa não só o que não está presente, mas o que não existe.
Se a escrita foi capaz de substituir a antiga representação por imagens, o código da informática concebido pelo inglês Alan Turing, em 1936, foi a condição de possibilidade da criação de uma nova linguagem cifrada e oculta (o invisível agora é a própria escrita) entre o homem e a máquina, uma escrita capaz de engendrar imagens com base na simulação. "Estamos afundando num oceano de imagens, que nos deixa com o raciocínio atrapalhado, quase inaptos à argumentação e ao debate, pois na imagem a negação é impossível."
As imagens não podem dizer não; ao contrário da escrita, elas só afirmam o que mostram. Apresentam uma coisa, mas não podem negar ao mesmo tempo o que apresentam. As imagens se sobrepõem. Na imagem, não existe o não. "Falamos num universo plano, dessimbolizado, onde todas as palavras se equivalem", escreve Herrenschmidt.
Talvez ainda seja cedo para arriscar um pensamento sobre a nova revolução da escrita iniciada pela informática e pelo código capaz de fazer as máquinas compreenderem os homens. É a primeira e a única das três revoluções analisadas por Herrenschmidt que (até agora) não se fez acompanhar por um mito fundador, que explique o seu surgimento. A própria autora deixa as conclusões, que poderiam lembrar histórias de ficção científica, em aberto. De qualquer jeito, a idéia de uma sociedade fundada na imagem, onde o não já não pode ser representado, certamente não anuncia o melhor dos mundos.


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