|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BERNARDO CARVALHO
A imagem não diz não
A idéia de uma sociedade fundada na imagem não anuncia o melhor dos mundos
|
LOGO NO início do seu tratado
sobre a escrita ocidental, a
francesa Clarisse Herrenschmidt, lingüista do Instituto de Antropologia Social do Collège de
France e especialista no Irã antigo,
anterior ao islamismo, diz que seu livro não foi escrito com o objetivo de
explicar o presente como o fim de
uma história dos signos: ao contrário, estamos bem no meio do redemoinho, diante de uma "devastação
semiológica", de uma nova revolução da escrita, sob a égide da informática.
"Les Trois Écritures - Langue,
Nombre, Code" (as três escritas -língua, número, código), publicado há
pouco mais de um mês na França,
pela Gallimard, embora não chegue
a nenhuma conclusão definitiva,
conta, entre idéias iluminadas e surpreendentes, a história da escrita e
de suas principais transformações
desde o seu nascimento como instrumento de poder nas cidades-Estado da Mesopotâmia (atual Iraque)
e do sul do Irã, por volta de 3300
a.C., até a invenção do código dos
computadores em meados do século
20 e a propagação da internet a partir dos Estados Unidos.
Cada forma de escrita estabelece
uma relação diferente entre quem a
usa e o mundo. Por exemplo: na origem, as escritas semíticas, sem vogais, como o hebraico, punham o leitor-intérprete no lugar do profeta,
emprestando sua voz às palavras de
Deus. A linguagem era de origem divina. Deus retinha as vogais, que representam o som em sua forma gráfica. A escrita era a palavra de Deus,
uma forma de enigma a ser interpretado. Nas escritas consonantes (sem
vogais), o mundo e a linguagem fazem parte da mesma criação divina.
Com a introdução das vogais no alfabeto grego, as palavras e as coisas se
separam. A palavra de Deus não pode ser arbitrária, mas a dos homens
pode. A escrita passa a materializar a
voz dos homens. O ponto de vista
passa a ser do sujeito, daquele que
fala.
Em entrevista ao jornal "Libération", Herrenschmidt diz que esses
dois modos de escrita correspondem a diferentes modos de pensar.
A filosofia ocidental, por exemplo, se
desenvolveu dando a palavra ao sujeito, enquanto na filosofia árabe isso é bem menos freqüente.
A escrita numérica em sua forma
monetária aritmética, com a circulação de moedas cunhadas desde a
Grécia do século 7º a.C., também teve um papel decisivo, sobretudo no
Ocidente, disseminando o uso dos
números pela sociedade e permitindo o desenvolvimento das ciências e
das técnicas.
A escrita tornou visível o invisível.
A idéia pode ser óbvia para um lingüista, mas fascina o leitor leigo a cada reaparição ao longo do livro. Nos
primórdios, a escrita tornou Deus e
a linguagem (o sopro dos corpos) simultaneamente visíveis e presentes.
"Os antigos sentiram que a escrita
tocava o invisível. Na realidade, a
linguagem, ela própria invisível,
mostra o que está fora da visão, nomeia o invisível. A escrita, que capta
a linguagem, faz ver o invisível e se
torna o lugar de encontro entre os
vivos visíveis e os eternos invisíveis",
escreve Herrenschmidt. A escrita
representa não só o que não está
presente, mas o que não existe.
Se a escrita foi capaz de substituir
a antiga representação por imagens,
o código da informática concebido
pelo inglês Alan Turing, em 1936, foi
a condição de possibilidade da criação de uma nova linguagem cifrada e
oculta (o invisível agora é a própria
escrita) entre o homem e a máquina,
uma escrita capaz de engendrar
imagens com base na simulação.
"Estamos afundando num oceano
de imagens, que nos deixa com o raciocínio atrapalhado, quase inaptos
à argumentação e ao debate, pois na
imagem a negação é impossível."
As imagens não podem dizer não;
ao contrário da escrita, elas só afirmam o que mostram. Apresentam
uma coisa, mas não podem negar ao
mesmo tempo o que apresentam. As
imagens se sobrepõem. Na imagem,
não existe o não. "Falamos num universo plano, dessimbolizado, onde
todas as palavras se equivalem", escreve Herrenschmidt.
Talvez ainda seja cedo para arriscar um pensamento sobre a nova revolução da escrita iniciada pela informática e pelo código capaz de fazer as máquinas compreenderem os
homens. É a primeira e a única das
três revoluções analisadas por Herrenschmidt que (até agora) não se
fez acompanhar por um mito fundador, que explique o seu surgimento.
A própria autora deixa as conclusões, que poderiam lembrar histórias de ficção científica, em aberto.
De qualquer jeito, a idéia de uma sociedade fundada na imagem, onde o
não já não pode ser representado,
certamente não anuncia o melhor
dos mundos.
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Série de humor on-line convida internautas a participar de roteiro Índice
|