São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2008

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MÔNICA BERGAMO

bergamo@folhasp.com.br

O festival e o trapalhão

Com a audiência de seus filmes em queda, Renato Aragão vai às lágrimas em Gramado, diz que já fez dois filmes por ano e que hoje "mal dá pra fazer um"

Edison Vara/PressPhoto


Carolina, 9 anos, prendeu os cabelos loiros com presilha em forma de uma grande flor cor-de-rosa. Também pediu à mãe para usar o par de botas da mesma cor, reservado para ocasiões especiais. Às três e meia da tarde do último domingo, ela se equilibrava na ponta da botinha para enxergar o ídolo, Renato Aragão, 73. Dentro de uma sala, ele dava entrevista coletiva no 36º Festival de Cinema de Gramado, que começou no dia 10 e terminou ontem. "Tu acha que ele vai me dar autógrafo, moça?", pergunta Carol à repórter. E de que filme do trapalhão Didi ela mais gosta? "Eu não vi nenhum filme dele, só as coisas que passam na TV."

 
Do lado de dentro, Didi, homenageado do festival como o homem com mais público na história do cinema nacional, reclama justamente da dificuldade em levar espectadores às salas para ver os filmes brasileiros. "Só o que o "Kung Fu Panda" [desenho da DreamWorks] gastou no lançamento, eu gastei pra fazer um filme todo", lamenta. A própria fã Carol só foi ao cinema nas férias para ver o desenho americano. "Eu nem sabia que tinha do Didi, moça."
 
Tem filme do Didi em cartaz sim, mas, como Carol, pouca gente devia saber: "O Guerreiro Didi e a Ninja Lili" fez 245 mil espectadores -bem distante dos números que levaram outros filmes do trapalhão ao ranking dos recordistas nacionais, como os cerca de 5 milhões de espectadores de "Os Saltimbancos Trapalhões" (1981), "Os Trapalhões na Serra Pelada" (1982) e "Cinderelo Trapalhão" (1979). Mesmo assim, Renato Aragão não se diz ressentido: "Cinema tá aqui ó", diz, mostrando uma veia do braço.
 
Cercado por três seguranças e dezenas de câmeras digitais dos fãs, ele deixou a entrevista rumo ao hotel para trocar de roupa. Vestia calça jeans Levi's, com a carteira marrom de couro quase caindo do bolso de trás, tênis Nike e camisa cinza, com mangas um tanto dobradas. A caminho do terno e da gravata, ele falou à coluna:
 

FOLHA - Falta oferta de filmes nacionais para o público infantil?
RENATO ARAGÃO
- Falta, falta. Antigamente eu até fazia dois filmes por ano, mas hoje em dia mal dá pra fazer um.

FOLHA - Não é ruim para a criança ter só filme americano como opção?
ARAGÃO
- O que eu vejo é que o americano empurra os seus costumes. É beisebol, é não sei o quê... Nossa identidade vem sendo atropelada. Eu sempre levo uma identidade brasileira nos meus filmes, sem tom educativo. Mesmo assim, eles nos massacram. Ainda mais porque são uma potência de dinheiro: devem ter gasto R$ 3 milhões pra divulgar o "Kung Fu Panda", eu gasto isso pra tudo!

FOLHA - O senhor fez 47 filmes, um recorde para brasileiros. Por que não se produz mais no país?
ARAGÃO
- Olha, eu não tenho muita esperança, por exemplo, de que o governo faça isso mudar. A gente é que tem que ter criatividade. Rapaz, você pode exibir o que quiser hoje em dia! Mas os americanos... isso é desleal. É caso pra Procon! [risos]
À noite, lá está ele ao lado de Lívian e Lilian, filha e mulher, para a abertura do Festival de Gramado. Lívian e ele cantam o hino nacional de mãos dadas. Assistem a um concerto e a menina, meia de lã branca, sapatilha e vestido branco com paetêzinhos bordados, cai na risada quando a orquestra executa "Like a Virgin", de Madonna.

 
Ao lado da família Aragão, o velho e bom drama da área VIP. São 120 cadeiras de frente para a orquestra -mas há muito mais gente tentando entrar. "Só sentam os convidados de cinema e as autoridades. Assim, ó: se fizer parte de algum filme, entra. Se quiser só ver, não", dizia uma assessora aos seguranças. Aperta aqui, estica ali, a multidão se espreme na grade para ver a abertura.
 
"Ah, todos os filmes que eu gosto são do meu pai", diz Lívian, já sentadinha na platéia do Palácio dos Festivais. "Mas, olha, um filme que eu vi nas férias e gostei foi "Viagem ao Centro da Terra" e "Ilha da Imaginação'", conta. E o "Kung Fu Panda"? "Esse eu não vi, não." "Ela é apaixonada pelo pai. Mãe, ela nem lembra que tem", diz Lilian. A filha aperta o braço do pai, vira o rosto e volta rindo para beijar a mãe.
 
No palco, Renato Aragão recebe o kikito e dedica o prêmio a Lilian. Na platéia, mulher e filha choram. Quando a apresentadora do festival revela "mais uma surpresa a Didi" -um computador de última geração - ele faz menção de não aceitar, fazendo careta. "Ele nem sabe o que é isso", diz Lilian, enxugando as lágrimas.
 
Chega a vez de Leandra Leal apresentar "Nome Próprio", protagonizado por ela e inspirado na obra de Clarah Aver buck. "É a primeira vez que estou aqui consciente", diz a atriz. Alguns "Hein?" e "Como assim?" surgem na platéia. "É que eu já vim a Gramado na barriga da minha mãe. Ela me liga toda hora para perguntar como tá aqui", explica. Clarah não diz nada ao microfone -ela, inclusive, já cansou de explicar que "Nome Próprio" não é um retrato de sua personalidade. E, lá pela uma hora de filme, a escritora abandona a sessão.
 
Veterano, o diretor do clássico "Todas as Mulheres do Mundo", Domingos Oliveira, que apresentou seu "Juventude" no evento faz as contas de ter recebido 12 kikitos ao longo da carreira. "É melhor que [o festival de] Brasília, que ainda é burramente conduzido." Para Oliveira, o problema da maioria dos festivais, "não de Gramado", e também da legislação de fomento ao cinema é um certo "preconceito com os veteranos". "Eles tendem a premiar os cineastas novos. O Brasil, em geral, tem preconceito contra velhos. Mas, veja, o cineasta só não se repete no primeiro filme. Acho que eles temem a minha veteranice", diz e, em seguida, completa: "Sendo assim, em vez de 70, eu digo que tenho sete anos".

Frase

"Eles [estúdios de cinema americanos] nos massacram. Ainda mais porque são uma potência de dinheiro: devem ter gasto R$ 3 milhões pra divulgar o "Kung Fu Panda", eu gasto isso pra tudo!"
RENATO ARAGÃO

Reportagem AUDREY FURLANETO



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