São Paulo, sábado, 17 de setembro de 2005

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RODAPÉ

Os despojos da revolta

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

Mais de 15 anos depois da grata surpresa de "Relato de um Certo Oriente" (1989), confirmada por "Dois Irmãos" (2000), "Cinzas do Norte", de Milton Hatoum, veio à luz cercado de grande expectativa: a de uma escrita fina que burila, ao mesmo tempo e com igual desenvoltura, a intimidade da memória e do romance familiar e a novidade literária de uma matéria narrativa insuficientemente conhecida, a Amazônia do pós-guerra. Não o faz com arroubos experimentalistas -o que lhe vale narizes secretamente torcidos dos que não crêem na possibilidade de atualização crítica do romance na tradição flaubertiana- nem tampouco com ímpeto oportunista, escritor "sem fronteira" em missão não-governamental, denunciando a dilapidação da floresta em perspectiva atraente à maré planetária das ONGs e à curiosidade estrangeira.
Uma carta-testamento, último vestígio de um amigo cuja revolta o tempo engoliu, a memória de um primeiro encontro entre dois meninos, à margem de um cais, e eis o leitor fisgado, convidado a ingressar no labirinto de igarapés e caminhos que conduzem de um extremo a outro. A travessia coincide com o fim do banquete de sobras da opulência extrativista, a vigarice empertigada das fortunas consolidadas à sombra do poder militar, as tímidas tentativas de resistência ao arbítrio. A atenção concentrada sobre o contínuo enfrentamento entre Mundo e seu pai, Trajano Mattoso, naturezas antípodas e inconciliáveis (o artista e o burguês), tal como testemunhadas por Lavo, o amigo órfão e de poucas posses, coloca o romance muito distante do didatismo enciclopédico, a história reduzida a fichas de pesquisa, tão comum na narrativa contemporânea.
Confiada ao advogado manauara em que Lavo se converteu, mas entrecortada por uma longa carta de seu tio Ran, espectador privilegiado e personagem secundário da disputa familiar, a narração sabiamente estilhaçada do romance encontra correspondência numa multiplicação de espaços comunicantes. No âmbito local, mostra a degradação da paisagem de Manaus e do interior amazônico, ao longo dos anos 60 e 70, explorando a contigüidade contrastante entre as vilas operárias e a suntuosidade dos palacetes, exibindo o declínio da opulenta Vila Amazônia, em Parintins, orgulho do pai e horror de Mundo. Fora dele, expande os círculos do inconformismo do rapaz, realizando a vocação prefigurada no apelido, na fuga em direção à cena artística de uma Berlim e uma Londres reviradas pelas revoluções sexual e estudantil, ou ao Rio de Janeiro, refúgio falsamente idílico em que mãe infeliz dá vazão a seus impulsos de consumo e foge do marido tirânico.
Na imensidão da floresta, o custo da construção dos impérios econômicos, recentes e mudando de mãos em ritmo vertiginoso, inclui uma relação de promíscua cordialidade, mediada pela violência e pela exploração, das elites com os caboclos ribeirinhos. No romance, em terra de lei recente e em tempos de exceção, a submissão pela força ou cooptação pelo favor quebram a fibra moral de alto a baixo, não deixando espaço para simpatias maniqueístas e dissolvendo as boas intenções. Tio Ran, caboclo inventivo, que foge às rédeas do trabalho formal, acaba traficando peixes ornamentais; Arana, artista com fumos de marginalidade, mergulhado na matéria local, torna-se um engravatado lambe-botas do poder, engrupindo turistas e desenhando caros móveis de mogno.
A recusa, inflexível, à "obediência estúpida" leva Mundo à dissolução, enquanto seu amigo de infância afunda na morna mediocridade da rotina. A discrição eficaz com que Milton Hatoum compõe estes elementos, em que os despojos de sonhos privados de grandeza e vida política travada se revertem em amarga decepção, é notável. Em "Cinzas do Norte", os dados da cultura local nunca são ornamentos artificiosos, mas se deixam apreender a partir de uma dimensão universal, relativizadora, feridas no narrador que reafirmam o seu estilo próprio e oferecem, em narrativa envolvente, um quadro vivo e contraditório da nossa história recente.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

Cinzas do Norte
    
Autor: Milton Hatoum
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39 (312 págs.)


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