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LIVROS
ROMANCE
Obra do escritor francês foi proibida em seu país entre 1949 e 1973
Boris Vian imita ficção policial para expor racismo americano
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Em meados dos anos 40, ao final da Segunda Guerra Mundial, os franceses liam avidamente
os romances policiais americanos
da "série noire", de Raymond
Chandler, Dashiell Hammet e James M. Cain, com seus heróis cínicos e ambíguos, suas mulheres
fatais, seu férvido erotismo.
O sucesso do gênero era tão
grande que o editor Jean d'Halluin pediu a Boris Vian (1920-59),
então um escritor iniciante, apaixonado pelo jazz e conhecedor da
literatura americana, que encontrasse e traduzisse um livro naquela linha.
O inquieto Vian, que em sua
breve vida foi também engenheiro, trompetista e ator, resolveu escrever ele mesmo o livro, inventando para tanto uma espécie de
heterônimo, o norte-americano
Vernon Sullivan, de cujo romance
"Vou Cuspir no Seu Túmulo"
(1946) ele se apresentava meramente como tradutor.
O sucesso e o escândalo foram
tão grandes que Vian teve que revelar o embuste e enfrentar um
processo por pornografia. O livro
ficou proibido na França entre
1949 e 1973, período em que não
deixou de circular em edições
clandestinas.
A razão da controvérsia não era
apenas de ordem moral mas também política e social: o romance
tratava, de um ponto de vista audacioso, do delicado tema das relações entre negros e brancos no
sul dos EUA.
Parodiando os policiais "noir",
"Vou Cuspir no Seu Túmulo"
narra em primeira pessoa (com
exceção dos últimos capítulos) a
vingança cega, mas sistemática,
do jovem negro de pele clara Lee
Anderson contra a elite sulista
que matou seu irmão mais novo
pelo "crime" de namorar com
uma moça branca.
Se na superfície o livro de Vian
mimetiza a agilidade e o cinismo
dos policiais "hard boiled", há em
seu cerne uma intenção reflexiva e
crítica que remete a outra vertente
da literatura dos EUA, a de William Faulkner.
Vivendo no limiar entre dois
mundos -o dos brancos e o dos
negros-, o protagonista Lee Anderson ilumina de modo ímpar as
contradições étnicas americanas e
remete a um trágico personagem
faulkneriano, Joe Christmas, o negro de pele branca (ou branco de
"sangue negro") de "Luz em
Agosto".
No centro de ambos os romances -escritos, de resto, em estilos
completamente distintos-, está
aquilo que o crítico Gilbert Pestureau, no posfácio do livro de Vian,
chamou de "inferno da sexualidade inter-racial", que tão freqüentemente resultou em estupro e
linchamento naquela parte da
América.
Ao tom grave e à respiração bíblica do livro de Faulkner (de
1932), "Vou Cuspir no Seu Túmulo" contrapõe a ríspida vivacidade
de um "thriller" à James Cain.
Mostra o enorme talento de Vian
em incorporar e mudar de registro os valores e clichês da cultura
americana contemporânea, com
seu culto à velocidade, à liberdade
e à violência.
Um grande livro, em suma, tão
contundente quanto na época em
que foi escrito, há 60 anos.
Vou Cuspir no Seu Túmulo
Autor: Boris Vian
Tradução: Mauro Pinheiro
Editora: Ediouro
Quanto: R$ 39,90 (126 págs.)
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