São Paulo, sábado, 17 de setembro de 2005

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LIVROS

ROMANCE


Obra do escritor francês foi proibida em seu país entre 1949 e 1973

Boris Vian imita ficção policial para expor racismo americano

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Em meados dos anos 40, ao final da Segunda Guerra Mundial, os franceses liam avidamente os romances policiais americanos da "série noire", de Raymond Chandler, Dashiell Hammet e James M. Cain, com seus heróis cínicos e ambíguos, suas mulheres fatais, seu férvido erotismo.
O sucesso do gênero era tão grande que o editor Jean d'Halluin pediu a Boris Vian (1920-59), então um escritor iniciante, apaixonado pelo jazz e conhecedor da literatura americana, que encontrasse e traduzisse um livro naquela linha.
O inquieto Vian, que em sua breve vida foi também engenheiro, trompetista e ator, resolveu escrever ele mesmo o livro, inventando para tanto uma espécie de heterônimo, o norte-americano Vernon Sullivan, de cujo romance "Vou Cuspir no Seu Túmulo" (1946) ele se apresentava meramente como tradutor.
O sucesso e o escândalo foram tão grandes que Vian teve que revelar o embuste e enfrentar um processo por pornografia. O livro ficou proibido na França entre 1949 e 1973, período em que não deixou de circular em edições clandestinas.
A razão da controvérsia não era apenas de ordem moral mas também política e social: o romance tratava, de um ponto de vista audacioso, do delicado tema das relações entre negros e brancos no sul dos EUA.
Parodiando os policiais "noir", "Vou Cuspir no Seu Túmulo" narra em primeira pessoa (com exceção dos últimos capítulos) a vingança cega, mas sistemática, do jovem negro de pele clara Lee Anderson contra a elite sulista que matou seu irmão mais novo pelo "crime" de namorar com uma moça branca.
Se na superfície o livro de Vian mimetiza a agilidade e o cinismo dos policiais "hard boiled", há em seu cerne uma intenção reflexiva e crítica que remete a outra vertente da literatura dos EUA, a de William Faulkner.
Vivendo no limiar entre dois mundos -o dos brancos e o dos negros-, o protagonista Lee Anderson ilumina de modo ímpar as contradições étnicas americanas e remete a um trágico personagem faulkneriano, Joe Christmas, o negro de pele branca (ou branco de "sangue negro") de "Luz em Agosto".
No centro de ambos os romances -escritos, de resto, em estilos completamente distintos-, está aquilo que o crítico Gilbert Pestureau, no posfácio do livro de Vian, chamou de "inferno da sexualidade inter-racial", que tão freqüentemente resultou em estupro e linchamento naquela parte da América.
Ao tom grave e à respiração bíblica do livro de Faulkner (de 1932), "Vou Cuspir no Seu Túmulo" contrapõe a ríspida vivacidade de um "thriller" à James Cain. Mostra o enorme talento de Vian em incorporar e mudar de registro os valores e clichês da cultura americana contemporânea, com seu culto à velocidade, à liberdade e à violência.
Um grande livro, em suma, tão contundente quanto na época em que foi escrito, há 60 anos.


Vou Cuspir no Seu Túmulo
    
Autor: Boris Vian
Tradução: Mauro Pinheiro
Editora: Ediouro
Quanto: R$ 39,90 (126 págs.)


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