São Paulo, sexta-feira, 17 de setembro de 2010

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Debate que eu gosto

Depois de levantar polêmica com "Tropa de Elite", o cineasta José Padilha faz segredo sobre a continuação do longa e planeja botar o dedo em duas outras feridas do Brasil -pirataria e mensalão

TETÉ RIBEIRO
ENVIADA ESPECIAL AO RIO

A produtora de José Padilha fica no começo de uma ruazinha estreita do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro.
A numeração diminui, o táxi desacelera e aparece um muro alto, cinza, com segurança na porta. Mas essa não é a casa certa. A dele é a do lado, toda aberta, pintada de amarelinho claro, com bandeirinhas tibetanas na frente que dançam com o vento.
"Quase todos os dias alguém toca a campainha aqui e pergunta se tem aula de meditação", diverte-se.
Lá dentro, as paredes são decoradas com pôsteres dos filmes que produzem, desenhados pela arquiteta Jô Rezende, mulher de Padilha "há uns 13, 14 anos".
Os dois têm um filho, Guilherme, de seis anos, "meu companheiro de SporTV e desenho animado", confessa o fã de "Kid vs. Kat". "É mil vezes mais estressante do que meus filmes. O gato é um alienígena que quer matar a menina", empolga-se.
Era o último dia antes de uma viagem a Los Angeles, onde iria finalizar a cor de "Tropa de Elite 2". "Lá meu filme não quer dizer nada", comemora o diretor do longa mais pirateado da história do cinema brasileiro, o "Tropa 1", como ele chama agora o filme/acontecimento de 2007.
Ele odeia pirataria, por motivos óbvios e por outros mais altruístas. "É concorrência desleal com o dono de uma lojinha que aluga DVD e paga todos os impostos."
Como o primeiro, "Tropa 2" é baseado em muita pesquisa. "Não me considero um artista, não tenho criatividade para inventar histórias do nada", explica. "O que eu sei fazer é pesquisar, pesquisar, pesquisar, aí bolar uma história para representar o que vi e embutir uma crônica social." E, aí, deixa que o debate aconteça.

GRANDES IDEAIS
José Padilha é um ser político. As conversas com ele têm temas abrangentes, universais. Um diálogo pode começar com uma pergunta mundana, mas acaba sempre com muitos conceitos, citações de filósofos, economistas, cientistas políticos, neurologistas. Quando está animado com um raciocínio, fala até perder o fôlego. Um exemplo: pergunto se ele decidiu filmar "Tropa 2" porque é irresistível não explorar mais o maior sucesso de sua carreira.
Ele diz que não, que moveu-o a vontade de fazer um filme 100% nacional, sem dinheiro estrangeiro nem um grande estúdio por trás. "Meu sonho é tornar o cinema brasileiro sustentável."
O novo filme é uma coprodução dele, de seu parceiro de produtora, Marcos Prado, do protagonista, Wagner Moura, e do roteirista, Bráulio Mantovani.
Essa equipe tem controle sobre todas as decisões que envolvem um grande lançamento no cinema, desde a distribuição até a exibição na TV aberta depois ("Tropa 2" já foi comprado pela Rede Globo, que deve exibi-lo no final do ano que vem).
"Tenho muitas críticas às distribuidoras, elas botam pouco dinheiro no marketing, mas viram donas do filme", explica. "Em vez de ficar reclamando, resolvi fazer uma experiência", conta.

TROPA 2
O novo filme se passa nos dias de hoje, portanto 13 anos depois de "Tropa 1", que acontecia às vésperas da última visita do papa João Paulo 2º ao Brasil, em 1997.
Padilha não mostrou o filme à reportagem nem revelou nenhum detalhe do roteiro, a não ser talvez um.
Pergunto se o filme tem beijo na boca e ele diz, meio contrariado, "não vou responder". E emenda: ""Tropa 1" tem, mas ninguém lembra, dá vontade de tirar".
Outra birra do cineasta é o fato de o Capitão Nascimento (Wagner Moura) ter virado herói. "Não era para ter acontecido isso", esperneia. Mas, já que virou, decidiu usá-lo para discutir um assunto que queria faz tempo, mas ainda não tinha tido oportunidade.
"Está insinuado em "Tropa 1", mas não vou dizer mais nada", despista. E confessa: "A pirataria pode ter me ajudado nisso. Por causa dela, o filme tem um grande recall", ou seja, é revisto e assistido pela primeira vez por quem era novo demais em 2007.
Assim como o protagonista, o sangue e as armas pesadas voltam à cena. "A violência está em todos nós, é consequência da nossa história evolutiva."
"O que quero saber é: o que leva um indivíduo a desviar dos padrões morais da sociedade em que vive?"
São essas grandes questões que parecem impulsionar o cinema de Padilha. Isso e uma certa vontade de ir fazendo, aprendendo e pensando a respeito no processo, sem dividir o tempo entre "hora de meditar" e "hora de agir". Talvez as bandeirinhas do Tibete na frente da produtora tenham significado mais profundo, afinal de contas.

ORIGEM
José Padilha nasceu e cresceu no Rio, filho de um industrial carioca e uma dona de casa paranaense.
Estudou física e administração na PUC do Rio e foi trabalhar no mercado financeiro. Jogava tênis todos os dias durante a adolescência, de quatro a seis horas por dia. Até que machucou o ombro e teve que parar de jogar e disputar campeonatos.
"Meu ídolo é o Guga, as pessoas não sabem como é difícil fazer o que ele faz."
Mas a grande paixão é o Flamengo, uma das poucas coisas que o tiram de casa. "Vejo filmes em DVD e leio livros no tempo livre."
Vai ao Maracanã ver seu time jogar, única ocasião fora dos sets em que é acompanhado por um artista, o rapper Gabriel, o Pensador.
"Ele é parado cem vezes do elevador até as nossas cadeiras, eu sou reconhecido por no máximo duas pessoas", diz. "Ele é pop, eu sou cult."
Quando decidiu que queria se aventurar pelo mundo do cinema, foi proativo. Telefonou para o diretor de documentários norte-americano Nigel Noble, professor da Universidade de Nova York e vencedor do Oscar de melhor documentário em 1982, e convidou-o para um trabalho. Dois, na verdade.
"Ofereci a direção de um filme sobre os carvoeiros que ia produzir, mas disse que, no processo, queria aprender a fazer documentário."
Noble aceitou o convite e o desafio e assim nasceu a produtora Zazen, a parceria com Marcos Prado e a carreira do cineasta.

TEMPO DE REFLEXÃO
A estreia como diretor aconteceu em 2002 com o documentário "Ônibus 174", baseado em um fato tão real que foi acompanhado ao vivo pela TV.
Quase não havia margem para interpretação no sequestro de um ônibus no Rio de Janeiro que culminou na morte de uma refém e do sequestrador.
Padilha viu na TV e quis saber mais, fuçar a história, entender o sequestrador, conhecer suas origens. Fez o filme aplicando as noções que tinha aprendido com Noble e observando erros e acertos dos outros.
"Cinema é uma arte narrativa, a estética tem que servir à história", foi a primeira lição. A segunda é "o filme não precisa ser lento para gerar pensamento, não precisa dar tempo de reflexão durante a obra".
Entre seus próximos projetos estão um filme sobre pirataria e outro sobre o mensalão, chamado "Nunca Antes na História Deste País". "O roteiro está pronto, mas é difícil captar [recursos] para esse filme", conta, achando engraçada a reação dos empresários. "Mas o BNDES deu R$ 1 milhão", diz. "Queria filmar antes do "Tropa 2", mas não consegui o dinheiro."
Encerrada a entrevista, ele atende um telefonema, dá um tchau com a mão que está livre e, rindo, emenda o sinal universal de louco, girando o dedo indicador na altura da orelha enquanto diz: "Não, o Capitão Nascimento não é um exterminador do futuro".

Quem mandou esconder tanto o filme?


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