São Paulo, sexta-feira, 17 de setembro de 2010

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CARLOS HEITOR CONY

Era alta a noite e a lua...


Os charutos provaram que, ao menos naquele transe, eu, que nunca fui inocente de nada, estava inocente


FUMAR CHARUTOS é um dos vícios que cultivo com certo carinho. Depois de outro tipo de prazer, ele é o meu preferido. E, tal como o outro, traz às vezes alguns problemas. Deu-se que, formada a opinião de que sou curtidor de bons charutos, amigos ou eventuais solicitantes de um favor costumam me presentear com exemplares que consideram ser excelentes.
Acontece que fumar charuto é uma arte, um bom charuto é mais nobre do que o mais nobre dos champanhes. E o que há de ignorância e equívoco na matéria não é mole. De início, eu retribuía os presentes gentilmente, elogiando a qualidade e o espécime escolhido.
Mas tantas sofri que optei, em desespero de causa, pela sinceridade. Um dia, um amigo trouxe-me um charuto com o aviso: era da mesma marca fumada pelo presidente Kennedy num banquete na Casa Branca. No dia seguinte, ele me interpelou, julgando-me um ingrato, pois não lhe enaltecera as finas qualidades de sua amável lembrança.
Como sou amigo dele, agradeci mais uma vez o seu gesto, mas esculhambei o charuto, que o merecia ser. Para mim, charuto só havanas, "hechos em Cuba" e, eventualmente algumas marcas da antiga Suerdick, entre as quais incluo o generoso e popular "Ouro de Cuba". O resto só me dá trabalho e vexame.
E lembro um drama vivido, anos atrás, quando namorava certa donzela sergipana, caí na asneira de elogiar um mata-rato que o pai dela me ofertara, fabricação caseira, em Sergipe mesmo, creio que em Estância ou Propiá.
Dias depois, recebi dois imensos engradados de papelão com aqueles charutos infames. Distribuí o que pude entre adversários e desafetos, mas a provisão não acabava. Tentei me livrar deles através da lixeira do prédio onde morava. Entupi a lixeira e o síndico botou infamante aviso na portaria chamando-me de mau vizinho e péssimo condômino.
Uma noite, pedi a Kombi emprestada a um amigo e fomos os dois à Barra da Tijuca, onde havia uma pequena ponte sobre o braço do mar que ali forma uma restinga. Era alta a noite e a lua... bem, estou me perdendo, era madrugada, não havia ninguém e com a ajuda do meu amigo consegui jogar o engradado no mar.
O barulho quebrou o silêncio da noite, mas logo apareceu uma viatura da polícia pedindo satisfação. O que era aquilo que suspeitosamente boiava nas águas? Só podia ser um cadáver. Não havia lanterna à disposição, tentaram iluminar o caixote com os faróis do carro, mas não deu pé.
Apareceram outras patrulhas chamadas pelo rádio, haviam pilhado dois facínoras que se livravam de um cadáver. Das trevas irrompeu um repórter de "O Dia" para fazer a cobertura de mais um crime no agitado território da Barra daquele tempo. Eu jurava que eram charutos repudiados, mas provar quem há de? Só mesmo pela manhã, quando os primeiros pescadores saíram de suas cabanas para se fazer ao mar, foi possível apanhar o engradado que teimosamente insistia em não ir para o fundo.
Ainda bem. Se ele afundasse para sempre, eu não estaria escrevendo estas mal traçadas, pois deveria estar curtindo uma pena de 30 anos por homicídio e tentativa de ocultação de cadáver.
Felizmente tudo terminou bem. Aqueles charutos provaram a minha inocência. Ou seja, conseguiram o impossível: provar que, ao menos naquele transe, eu, que nunca fui inocente de nada, estava inocente mesmo.
De lá para cá, resisti à galanteria e sou sincero em matéria de charutos. Quem quiser me agradar pode me mandar "Montecristos", "Upmanns", "Romeos e Julietas", "Partagas", "Cohibas". Em casos mais modestos, aceito mesmo alguns havanas da Bahia. Depois dos cubanos, são os mais aceitáveis.
Na atual onda de repressão ao fumo, tenho passado alguns momentos desagradáveis, mas vou em frente. Procuro espaços abertos, mesmo assim me olham como um criminoso que atenta contra a estabilidade do universo. É banal a citação de Freud sobre charutos ("um charuto é apenas um charuto"). Ele também era vidrado neste prazer que pode causar câncer na garganta, mas eleva e consola a alma.


AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Antonio Cicero




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