São Paulo, sábado, 17 de setembro de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Filósofo repensa questões contemporâneas

Compilação "Notícias no Espelho" reúne textos de José Arthur Giannotti publicados na Folha entre 2000 e 2010

Lei Cidade Limpa, proliferação religiosa, terrorismo e eutanásia são analisados sob ângulos improváveis

HÉLIO SCHWARTSMAN

ARTICULISTA DA FOLHA

Se a função do intelectual público é introduzir um pouco de complexidade no debate de ideias, isto é, lembrar que as coisas raramente são tão simples quanto sugerem nossas intuições e pendores ideológicos, José Arthur Giannotti cumpre bem esse papel em "Notícias no Espelho".
Vantagem extra: após a tijolada ontológica com a qual o filósofo nos brindara no início do ano ("Lições de Filosofia Primeira", Companhia das Letras), os textos de "Notícias" -basicamente, uma seleta de artigos publicados na Folha entre 2000 e 2010- parecem quase límpidos.
Organizado por blocos temáticos como estética (o mais robusto deles, que traz também um ensaio inédito), ética e política, o livro consegue imprimir um pouco da densidade que caracteriza o pensamento de Giannotti a assuntos que frequentaram o jornal na última década.
É assim que o autor, ao longo de 35 artigos, nos convida a repensar sob ângulos às vezes improváveis a Lei Cidade Limpa, que baniu os outdoors de São Paulo, a falsificação de quadros, o terrorismo, o crescimento das religiões evangélicas, a eutanásia, a pesquisa com células-tronco, além de matérias mais propriamente filosóficas, como a Escola de Frankfurt, Marx, Wittgenstein e um bonito texto em homenagem ao filósofo Bento Prado Jr. (1937-2007).
Coletâneas, ao oferecerem um grande número de fios condutores possíveis, não facilitam muito a vida do resenhista, que se vê forçado a tomar decisões arbitrárias que não pode justificar.
Mas, já que este é o jogo, destaco o tema das imbricações entre política e moral, que perpassa vários textos do volume.
O assunto é particularmente interessante porque, em 2001, Giannotti, num outro artigo, que, infelizmente, não foi incluído na seleta, defendeu que existe uma diferença entre moralidade na esfera pública e na intimidade.
A primeira se articularia numa zona de indefinição, inseparável da ação política, que necessariamente manipula os vácuos e as inconsistências das regras que definem regras (um eco do paradoxo de Russell e do teorema da incompletude de Gödel?).
À época, o professor emérito da USP foi acusado de defender o fisiologismo e outras suspeitas que pairavam sobre o governo de seu amigo, Fernando Henrique Cardoso, gerando uma acre polêmica que duraria mais ou menos até 2004. Depois veio o "mensalão" no governo de Lula, e os adversários de Giannotti acharam mais prudente esquecer o assunto.
Passados dez anos e algumas reviravoltas da história, as teses do professor, que reaparecem de forma um pouco mais diplomática em vários textos de "Notícias", podem ser lidas de forma serena e se apresentam como hipóteses bastante razoáveis.
A diferença entre seguir a regra (aplicação "in abstracto") e negociar com a regra (aplicação "in concreto") não é afinal um dos temas centrais da filosofia ética? O melhor caminho para tornar a vida de todos um inferno é aplicar todas as leis existentes a todos os casos possíveis.
E será que alguém sinceramente espera que utilizemos o mesmo tipo de julgamento moral com nossos filhos e amigos (a esfera da intimidade) e com adversários políticos (moralidade pública)?
Vou um pouco mais longe e lembro que nos últimos anos foram publicados trabalhos (Giannotti aqui me acusará de psicologista, mas paciência) que sugerem que o ser humano mente em média três vezes a cada dez minutos e que a razão evoluiu, não para nos levar à verdade, mas para nos fazer vencer discussões, o que dá um novo alcance para as ideias de meu antigo professor.
"Notícias" é um livro valioso porque nos permite revisitar, com o benefício da retrospecção, temas que marcaram a década. Mas que não se iluda o leitor. Embora os artigos não tenham a impenetrabilidade de outros escritos de Giannotti, não são textos fáceis.
Esse é o preço que se paga quando se tenta introduzir alguma complexidade num debate que, cada vez mais, tem sido pautado por palavras de ordem no lugar de reflexões.

NOTÍCIAS NO ESPELHO
AUTOR José Arthur Giannotti
EDITORA Publifolha
QUANTO R$ 39,90 (280 págs.)




Texto Anterior: Painel das Letras - Josélia Aguiar: Whitman do leito
Próximo Texto: Encontro debate intelectuais na imprensa
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.