São Paulo, terça-feira, 17 de outubro de 2000

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ARNALDO JABOR
O PT está descobrindo a realidade brasileira

A importância de Lula nos anos 70 foi trazer para a cena política a figura do operário real. Antes, o "Operário" era uma ilusão; estátua de herói musculoso, peito nu, uma foice na mão e um martelo na outra, olhando o infinito. Ninguém conhecia o "Operário". Durante o tempo de Getúlio até Jango ainda era um produto vigiado, controlado como pelego ou massa de manobra, servindo para comícios de ditadores, era a multidão sem rosto no estádio do Vasco ou, mais tarde, nas passeatas da Petrobras, com tochas na mão.
Lula foi a única novidade da esquerda pós-64, que tinha fracassado por ignorância teórica e despreparo logístico. Quando o Lula apareceu, tinha a marca semelhante a de um Lech Walesa brasileiro, propondo um sindicalismo de resultados, independente tanto do Estado quanto das seduções dos intelectuais da época, que diziam: "Lula é legal, mas precisa ser domesticado..."" Não viam que, na sua intuição "ignorante", Lula tinha sacado a pós-modernidade, os sintomas da globalização que viria, dando a partida para um tipo de social-democracia possível, sendo inclusive a semente do PSDB, seu primo pequeno-burguês.
Nasceu depois o PT como importante acontecimento partidário, mas que acabou dividido em mil tendências, marcadas por um radicalismo ideológico que o transformou num arcaico sobrevivente dos anos 50.
Nunca me conformei com o sectarismo do PT, recolhendo o entulho totalitário que sobrou da queda do Muro, o que me dava a terrível sensação de desperdício histórico. Desde que escrevo esta pobre coluna, tenho repetido críticas contra os militantes imaginários, os religiosos do absoluto, contra os onanistas da utopia, os revolucionários do ressentimento, os oportunistas do "bem". Não sou juiz de partidos, mas já escrevi aqui que o PT (e outras esquerdas) tinham de se perguntar: "Onde temos errado no modo de ver o mundo? Não haverá uma discrepância entre a grandeza de nossos objetivos e os meios práticos para atingi-los?"
Sempre achei que o PT tinha sentimentos confusos em relação ao poder real, visto, no fundo, como uma "adesão ao sistema", criando uma contradição de atitudes: querer o poder e desprezá-lo ao mesmo tempo, transformando a vida de petistas vitoriosos como Cristovam Buarque e Vitor Buaiz em inferno de sabotagens e intromissões.
Mesmo sem alvará nem carteirinha, sempre disse aqui que o PT tinha de abandonar a obsessão pela idéia de "revolução" clássica, tornada inexequível pela marcha da história, e aceitar finalmente a democracia como melhor sistema, e não apenas como um regime "burguês". Sempre achei que a globalização da economia não é uma conspiração de meia dúzia de capitalistas gordos e de charuto para acabar conosco. Não; é uma inevitabilidade da economia mundial e, enquanto as esquerdas pensarem assim, só teremos soluções mágicas para combater seus malefícios e defender nossa localidade.
Em cima de meu caixotinho de comentarista, tenho declarado que um programa político para melhorar o Brasil não pode ficar só no âmbito da luta de classes e dos brados pela união do "povo". Sempre falei que um programa progressista no Brasil tinha de combater nossos vícios coloniais, que moldaram um sistema patrimonialista feito de burocratismo, de um estatismo delirante, de um processo jurídico infame e mantenedor de privilégios, de uma rede de instituições autoritárias e corruptas, disfarçadas de "democráticas", sendo que os "inimigos do povo" não são apenas o imperialismo ou a opressão, mas estão também entranhados em todos nós, inclusive na cabeça da própria esquerda.
Nesta coluna tenho escrito contra as utopias regressistas e sempre pergunto: como ser progressista sem ser voluntarista? Como casar a luta política com a humildade diante da invencível circularidade desordenada do mundo atual?
Nas minhas pobres diatribes, critiquei a idéia de que "dúvida" é "hesitação pequeno-burguesa", ou de que radicalização é "coisa de macho" e que aliança e diálogo são "coisas de viado".
No meu papel de cassandra pós-utópica, sempre adverti para o perigo de palavras "holísticas" e abstratas tipo "Homem", "Totalidade", "Realidade brasileira" (qual delas?), "Identidade Nacional", "Projeto". Prefiro palavras úteis como "sobredeterminação", "co-extensividade", "parcialidade". Achei e continuo achando que nosso enigma histórico não é ideológico nem épico, mas administrativo, reformista, e que a "praxis" política tem de ser de "erro e tentativa", uma luta humilde, parcial, até ridícula, sem recompensas heróicas, uma luta paciente pela melhoria da vida social. Desejar o "bem do povo" não basta; é preciso encontrar meios de consegui-lo. Sempre lembrei nesta coluna que, além das categorias de esquerda e direita, há outros escaninhos classificatórios, como esquizofrênicos e paranóicos, positivos e negativos, autoritários e democratas.
Não quero bancar o profetinha em retrospecto, reclamando patentes esquecidas, tipo "Eu não disse?", nem tenho mandato para reprovar ou diplomar o PT mas, na minha solidão de articulista, quero dizer que foi uma agradável surpresa o avanço político do PT caindo na "real", como mostram os resultados das eleições municipais. Vinte anos depois de deformarem a postura inicial do Lula no ABC, com delírios dialéticos e onipotência maluca, a realidade provou que ali, no primeiro Lula, é que estava o caminho para um programa possível para os trabalhadores e para a oposição funcional. O resto era literatura.


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