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ARNALDO JABOR
O PT está descobrindo a realidade brasileira
A importância de Lula
nos anos 70 foi trazer para a
cena política a figura do operário
real. Antes, o "Operário" era uma
ilusão; estátua de herói musculoso, peito nu, uma foice na mão e
um martelo na outra, olhando o
infinito. Ninguém conhecia o
"Operário". Durante o tempo de
Getúlio até Jango ainda era um
produto vigiado, controlado como pelego ou massa de manobra,
servindo para comícios de ditadores, era a multidão sem rosto no
estádio do Vasco ou, mais tarde,
nas passeatas da Petrobras, com
tochas na mão.
Lula foi a única novidade da esquerda pós-64, que tinha fracassado por ignorância teórica e despreparo logístico. Quando o Lula
apareceu, tinha a marca semelhante a de um Lech Walesa brasileiro, propondo um sindicalismo de resultados, independente
tanto do Estado quanto das seduções dos intelectuais da época,
que diziam: "Lula é legal, mas
precisa ser domesticado..."" Não
viam que, na sua intuição "ignorante", Lula tinha sacado a pós-modernidade, os sintomas da globalização que viria, dando a partida para um tipo de social-democracia possível, sendo inclusive a
semente do PSDB, seu primo pequeno-burguês.
Nasceu depois o PT como importante acontecimento partidário, mas que acabou dividido em
mil tendências, marcadas por um
radicalismo ideológico que o
transformou num arcaico sobrevivente dos anos 50.
Nunca me conformei com o sectarismo do PT, recolhendo o entulho totalitário que sobrou da queda do Muro, o que me dava a terrível sensação de desperdício histórico. Desde que escrevo esta pobre coluna, tenho repetido críticas
contra os militantes imaginários,
os religiosos do absoluto, contra
os onanistas da utopia, os revolucionários do ressentimento, os
oportunistas do "bem". Não sou
juiz de partidos, mas já escrevi
aqui que o PT (e outras esquerdas) tinham de se perguntar:
"Onde temos errado no modo de
ver o mundo? Não haverá uma
discrepância entre a grandeza de
nossos objetivos e os meios práticos para atingi-los?"
Sempre achei que o PT tinha
sentimentos confusos em relação
ao poder real, visto, no fundo, como uma "adesão ao sistema",
criando uma contradição de atitudes: querer o poder e desprezá-lo ao mesmo tempo, transformando a vida de petistas vitoriosos como Cristovam Buarque e
Vitor Buaiz em inferno de sabotagens e intromissões.
Mesmo sem alvará nem carteirinha, sempre disse aqui que o PT
tinha de abandonar a obsessão
pela idéia de "revolução" clássica,
tornada inexequível pela marcha
da história, e aceitar finalmente a
democracia como melhor sistema, e não apenas como um regime "burguês". Sempre achei que
a globalização da economia não é
uma conspiração de meia dúzia
de capitalistas gordos e de charuto para acabar conosco. Não; é
uma inevitabilidade da economia mundial e, enquanto as esquerdas pensarem assim, só teremos soluções mágicas para combater seus malefícios e defender
nossa localidade.
Em cima de meu caixotinho de
comentarista, tenho declarado
que um programa político para
melhorar o Brasil não pode ficar
só no âmbito da luta de classes e
dos brados pela união do "povo".
Sempre falei que um programa
progressista no Brasil tinha de
combater nossos vícios coloniais,
que moldaram um sistema patrimonialista feito de burocratismo,
de um estatismo delirante, de um
processo jurídico infame e mantenedor de privilégios, de uma rede
de instituições autoritárias e corruptas, disfarçadas de "democráticas", sendo que os "inimigos do
povo" não são apenas o imperialismo ou a opressão, mas estão
também entranhados em todos
nós, inclusive na cabeça da própria esquerda.
Nesta coluna tenho escrito contra as utopias regressistas e sempre pergunto: como ser progressista sem ser voluntarista? Como casar a luta política com a humildade diante da invencível circularidade desordenada do mundo
atual?
Nas minhas pobres diatribes,
critiquei a idéia de que "dúvida"
é "hesitação pequeno-burguesa",
ou de que radicalização é "coisa
de macho" e que aliança e diálogo são "coisas de viado".
No meu papel de cassandra pós-utópica, sempre adverti para o
perigo de palavras "holísticas" e
abstratas tipo "Homem", "Totalidade", "Realidade brasileira"
(qual delas?), "Identidade Nacional", "Projeto". Prefiro palavras
úteis como "sobredeterminação",
"co-extensividade", "parcialidade". Achei e continuo achando
que nosso enigma histórico não é
ideológico nem épico, mas administrativo, reformista, e que a
"praxis" política tem de ser de
"erro e tentativa", uma luta humilde, parcial, até ridícula, sem
recompensas heróicas, uma luta
paciente pela melhoria da vida
social. Desejar o "bem do povo"
não basta; é preciso encontrar
meios de consegui-lo. Sempre
lembrei nesta coluna que, além
das categorias de esquerda e direita, há outros escaninhos classificatórios, como esquizofrênicos e
paranóicos, positivos e negativos,
autoritários e democratas.
Não quero bancar o profetinha
em retrospecto, reclamando patentes esquecidas, tipo "Eu não
disse?", nem tenho mandato para
reprovar ou diplomar o PT mas,
na minha solidão de articulista,
quero dizer que foi uma agradável surpresa o avanço político do
PT caindo na "real", como mostram os resultados das eleições
municipais. Vinte anos depois de
deformarem a postura inicial do
Lula no ABC, com delírios dialéticos e onipotência maluca, a realidade provou que ali, no primeiro
Lula, é que estava o caminho para um programa possível para os
trabalhadores e para a oposição
funcional. O resto era literatura.
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