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CONTARDO CALLIGARIS
Seis razões para votar em Enéas
Enéas Carneiro foi eleito deputado federal por São Paulo
com quase 1,6 milhão de votos.
Para entender melhor o porquê
de seu sucesso, consultei vários
eleitores que votaram nele. As respostas que ouvi foram de seis tipos.
1) "Enéas vai encher o saco deles, lá em Brasília." Entende-se:
Enéas não é um político. Vai para
Brasília como ia para Washington o mr. Smith do filme de Frank
Capra ("Mr. Smith Goes to Washington", traduzido misteriosamente para "A Mulher Faz o Homem"). Cidadão comum honesto
e idealista como Smith, Enéas enfrentará o sistema político corrupto.
Sonhamos com uma democracia em que os bairros e as vilas escolheriam um de seus membros,
que aceitaria o mandato a contragosto, por dever cívico. Nesse
sonho, nossos representantes se
dedicariam à política temporariamente e por necessidades específicas (um projeto, uma missão).
Desconfiamos da política como
carreira ou como ambição, e
Enéas é o porta-voz de nosso desgosto com os políticos profissionais.
2) "Ele não tem o rabo preso" e
"ele não tem papas na língua".
Enéas grita e ataca: sua fúria não
poupará suscetibilidades. Ele ousará bater em qualquer um, doa a
quem doer. É homem adamantino, inteiro, que não aceita negociatas nem alianças duvidosas. Só
tem compromisso com a causa
fundamental: a da nação.
Nisso ele não é apenas diferente
dos políticos tradicionais. Ele representa também o contrário da
inevitável covardia de nossos
compromissos cotidianos. Votando nele, resgatamos os sapos que
engolimos a cada dia. "Não posso
mandar meu chefe ou meu tio à
p.q.p.? Voto no Enéas. Ele é minha coragem."
3) "Enéas não tenta ser bonito."
Ele é o oposto do galã. Aprendemos, eventualmente, que ele pinta a barba, mas pouco importa:
ele está acima das frescuras. Nenhum Duda Mendonça apara
seus pêlos.
Votando nele, compensamos
nossa frustração com as inevitáveis imperfeições de nossa própria
imagem. O voto é uma declaração contra o culto das aparências,
que sempre enganam. "Detesto o
meu próprio "look'? Voto no
Enéas, o candidato para quem o
"look" não importa. De repente, a
imperfeição do meu semblante
prova que, como Enéas, eu não
engano ninguém: somos autênticos."
4) "Enéas é inteligente." Ninguém conhece bem as idéias de
Enéas. Só se constata que ele está
indignado. Ora, a indignação é a
forma mais barata de inteligência: ela substitui a complexidade
pela irritação dos humores. Ao
mesmo tempo, sabe-se que Enéas
é cardiologista. Dedução: se ele é
doutor e tem esporros no lugar
das idéias, isso prova que os esporros (os meus, por exemplo) podem ser inteligentes.
Em suma, a indignação é validada como uma maneira de pensar a realidade. É uma receita
tradicional da oratória política: o
bom orador tem credibilidade suficiente para oferecer esporros em
vez de idéias e, assim, convencer
seus ouvintes de que, quando eles
estrilam, pensam.
5) "Com Enéas não tem conversa." Salvo loucuras um tanto suicidas, a margem de manobra de
quem assumirá o poder depois
destas eleições será pequena. O
contexto internacional e o momento limitam nossas esperanças.
Enéas cura essa impotência: ele
nos sugere que tudo o que acontece é efeito de inimigos identificáveis que conspiram contra a gente. O contexto e o momento escondem um complô. Portanto a complexidade do mundo é uma desculpa com a qual não queremos
papo: ela não freará a nossa ação.
6) "Ele vai denunciar sem piedade." Enéas não tem medo de
designar seus (nossos) inimigos.
Seu espírito não é intimidado por
empatias espontâneas que sempre sugerem clemência. Ou seja,
na hora de acusar invasores e
traidores, ele não vacilará, porque não reconhece em si nenhum
dos vícios dos culpados. Se pode
jogar facilmente a primeira pedra, é porque deve estar sem pecado.
Identificados com Enéas, podemos acreditar que nossos inimigos, por exemplo os corruptos que
vendem a nação, sejam radicalmente diferentes de nós. Não teremos medo de apontar o dedo,
porque estaremos sem manchas.
O sonegador despejará sua raiva
sobre a malversação empreendida pelos poderosos, esquecendo o
que ele tem em comum com eles.
O usureiro bradará contra os juros abusivos dos bancos. O aproveitador, o pequeno corruptor, o
fura-fila, o comerciante que não
imprime nota fiscal poderão fazer-se paladinos da legalidade.
Enéas redime nossa capacidade
de acusar e condenar. Nas suas
palavras, o acusado torna-se absolutamente outro, e podemos,
por um instante, desconhecer a
nós mesmos, ou seja, desconhecer
o que há em nós que nos acomuna com os culpados. É um descanso: a acusação feita aos outros nos
exime da tarefa de transformar a
nós mesmos.
Conclusão: com Enéas, os ideais
nos animam, a pureza nos sustenta, somos sinceros porque não somos bonitos, e nossa raiva é inteligente. Também, com Enéas, não
cairemos no conto do vigário da
complexidade do mundo, mas
iremos direto para a garganta do
mal. E poderemos desconhecer
que somos, todos e sempre, um
pouco parecidos com nossos inimigos. Que é que pode haver de
melhor?
E-mail:
ccalligari@uol.com.br
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