São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MÔNICA BERGAMO

É arte ou não é?

Luciana Cavalcanti/Folha Imagem
SEM TÍTULO, DE IVENS MACHADO
"A graça estaria em descobrir como são feitos esses vãos sem que as estacas elas caiam. Mas você nota um cabo prendendo"

Aurisleda Queiroz, dona-de-casa

"Será que isso é uma obra de arte ou a reforma do pavilhão?", questiona a dona-de-casa Teresa Brito à filha Rose. Elas reservaram uma tarde inteira para visitar a 26ª Bienal de Artes de São Paulo e estão diante de uma estrutura de ripas de madeira, idêntica àquelas que os pedreiros usam em construções.

"Acho que é reforma", arrisca Rose. Uma placa metálica, fixada na parede ao lado, põe fim ao mistério. Trata-se da instalação "Vital Brasil", de autoria do artista plástico paulista Thiago Bortolozzo.

"Muita gente vê essa instalação e pensa que a Bienal está em reforma", diverte-se um monitor do evento. Como ele, outros cerca de 300 estudantes de artes plásticas trabalham no local com a tarefa de orientar o público, que, atraído também pela entrada franca, comparece em peso - foram mais de 220 mil visitantes até a última quarta-feira - e sempre cheio de dúvidas. A coluna passou uma tarde na Bienal e acompanhou a reação das pessoas diante das obras.

Os amigos Demétrius, Hilber e Wesley, alunos do terceiro ano do Ensino Médio, foram juntos à mostra para fazer um trabalho de escola. "Posso dizer a verdade? "Tô" achando um porre", diz Demétrius.
 
Apesar de estar "louco para ir embora", Hilber aprova a instalação "Shots", que emite ruídos de tiros. "É legal, gostei do som. Mas se tocassem Linking Park ia ficar beleza", sorri, evocando o nome de uma de suas bandas preferidas.
 
Depois de duas horas na exposição, Anderson Izidoro, que trabalha como caseiro, dá seu veredicto: "Tem muita coisa sem pé na cabeça, mas estou gostando, no geral". Ele aproveitou a folga semanal para levar a mulher e os três filhos para a exposição. Ficou confuso na sala da instalação norueguesa "The Field II", que tem ao centro uma pilha de jornais com notícias do campo.
 
"Para mim, é um monte de jornal empilhado... Será que é arte ou pode pegar?", pergunta. "É arte, mas as pessoas podem levar o jornal", explica a monitora. "Sempre ficam em dúvida. Alguns vêm me contar: "Estão roubando os jornaizinhos", diz ela.
 
Iale Bucácio, 13, odiou a videoinstalação "Corrections 2", em que o artista búlgaro Rassim exibe em close a própria circuncisão. "Achei chocante e nojento." A justificativa do artista vem na placa: "A Bulgária é um país de diversas religiões e tradições (...) onde tais diferenças têm provocado muito derramamento de sangue".
 
Se algumas obras provocam repulsa, a instalação do chinês Qu Yan instiga o lado alérgico dos visitantes. "Há quem saia espirrando e com lágrimas nos olhos", diz um profissional da segurança. Trata-se da réplica de uma tenda montada pelos nômades da Mongólia .
 
"Achei bacana, mas atacou minha rinite", pondera o gerente de vendas Roberto Moretti. O webdesigner Fernando Yres faz coro: "O mau cheiro é muito forte. É mesmo sufocante." Paola Babeto, estudante, vê sentido no mal-estar provocado. "As obras causam sensações sonoras, tácteis, olfativas. Isso faz parte", diz.
 
Nice Nascimento e Leonardo dos Santos, que trabalham em uma loja que premiou os funcionários de bom desempenho com uma tarde livre para ir à Bienal, espantam-se com as fotos de rostos de bonecas na instalação "Antinomic Images". "Elas parecem o Chucky [monstro do filme "Brinquedo Assassino']", brinca Leonardo. "É uma das obras que mais me chamaram a atenção. Lembrei da minha infância, porque eu também rabiscava as minhas bonecas", diz Nice.
 
A dona-de-casa Aurisleda Queiroz vê a dúvida como fator de atração. "Nada aqui tem uma explicação clara, o gostoso é pensar", diz ela, que se decepcionou com a instalação de Ivens Machado. "São várias estacas de madeira e a graça estaria em tentar descobrir como são feitos esses vãos sem que elas caiam. Mas aí você nota que existe um cabo prendendo os troncos. Perde a graça", diz.
 
Nelson Aguilar, curador da obra de Machado, diz que o significado da instalação está na fluência de suas aberturas e passagens. Ele concorda, no entanto, com a valorização da dúvida proposta por Aurisleda. "Quem estiver interessado em "ter certeza" vai ao Masp e vê uma pintura do século 15 sobre a qual já existe uma teoria. Na arte contemporânea, a obra é um risco, e o público se arrisca junto do artista", diz ele
 
Depois de uma hora e meia pelo pavilhão, os amigos Jovil Prestes Jr. e Pumi Ying chegam cansados ao segundo piso. Já estão de saída? "Ainda não", diz ele. "Já estamos, sim", corrige ela. Jovil gostou das maquetes do cubano Carlos Garaicoa, mas acha que faltou interatividade na Bienal deste ano. "Existem alguns espaços um pouco entendiantes e outros que, apesar de difíceis de entender, são interessantes, como esse das giletes", diz ele.
 
E a grande lona retangular azul, estendida no piso térreo do pavilhão? Será que é arte? "Não, não", apressa-se a monitora para explicar. A lona cobre uma obra do artista Song Dong que é um mapa mundi coberto por balas e chocolates -os visitantes, conforme proposto pelos artistas, comeram todas as guloseimas e agora é preciso renovar o estoque. "Mas tem gente que chega e fica olhando como se fosse uma obra de arte", diz ela.


Texto Anterior: Realidade abarca vida mais ampla
Próximo Texto: Antibaixaria: Personalidades "desligam" Gugu e mundo cão
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.