São Paulo, sexta-feira, 17 de outubro de 2008

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32ª MOSTRA DE SP

"Dinheiro tem duas faces", diz Dardenne

"O Silêncio de Lorna" conta história de imigrante albanesa que busca ajuda da máfia para obter cidadania na Bélgica

"O tráfico de seres humanos e os casamentos de papel movimentam muito dinheiro", afirma o diretor Luc Dardenne à Folha


PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

David Cronenberg presidia o júri do Festival de Cannes em 1999, quando "Rosetta", de Jean-Pierre e Luc Dardenne, ganhou a Palma de Ouro. Recebida com surpresa e até certo escândalo ("Tudo sobre Minha Mãe", de Almodóvar, era o favorito e saiu apenas com o prêmio de direção), a Palma jogou luz sobre o cinema bressoniano de raro rigor estético e político dos irmãos belgas.
Desde "Rosetta", os Dardenne voltaram à Cannes com todos os seus filmes e sempre saíram de lá premiados, incluindo uma segunda Palma de Ouro, em 2005, por "A Criança", e o de melhor roteiro, neste ano, por "O Silêncio de Lorna" -exibido na Mostra de São Paulo.
Mantendo o olhar sobre o estado do mundo a partir de personagens específicos, os irmãos Dardenne contam a história de uma jovem imigrante albanesa (Arta Dobroshi) que tenta a vida em Liège (Bélgica). Para obter cidadania, Lorna procura ajuda da máfia russa e compra um casamento com Claudy, jovem viciado em drogas em reabilitação (Jérémie Renier).

Dinheiro é personagem
"O tráfico de seres humanos e os casamentos de papel movimentam muito dinheiro e são parte importante da receita das máfias hoje", disse Luc Dardenne, em entrevista à Folha, durante o Festival de Cannes. "Não quisemos fazer um filme-denúncia, e sim acompanhar uma personagem que se envolve nesse esquema."
Como em "A Criança", o dinheiro é um personagem à parte no desenvolvimento da trama. "Mas é um personagem com duas faces", disse Jean-Pierre Dardenne. "É o dinheiro da sobrevivência e da manipulação, mas, também, o dinheiro da confiança, como vemos na cena em que Claudy entrega a Lorna todo seu dinheiro, para não cair na tentação de comprar drogas." A história tem como inspiração um caso real que eles ouviram de uma amiga, cujo irmão, viciado, recebeu da máfia albanesa uma proposta de casamento arranjado.

Ator antes da técnica
O trabalho dos atores é um ponto forte dos filmes da dupla. Para o papel de Lorna foram feitos vários testes, e a escolhida foi a jovem albanesa Arta Dobroshi: "Eles assistiram a alguns filmes que havia feito, gostaram e me chamaram para fazer uma série de testes. Depois, fui para Liège e fiquei dois meses aprendendo francês".
Mais impressionante é o trabalho de Jérémie Renier, que conversou com um especialista para conhecer os efeitos de uma crise de abstinência no corpo e emagreceu 15 quilos em dois meses, quando se alimentou exclusivamente de saladas. "Nunca mais faço isso", brinca. "Não é bom para o corpo, é um sofrimento." Segundo Renier, os Dardenne dão liberdade incomum aos atores. "Ensaiamos bastante, "encontramos" a cena e só então eles pensam onde vão posicionar a câmera. O ator vem antes da técnica."

Do palco para a tela
Mas os ensaios não bastam para arrancar boas interpretações. "Gostamos de ensaiar, mas também tentamos fazer com que os atores não se fiem na técnica. Por isso, modificamos as coisas no set sem aviso e procuramos desestabilizar o ator", explica Luc Dardenne.
A técnica surgiu após alguns anos de experiência teatral. "Não foram filmes que deram vontade de fazer cinema. Trabalhávamos como assistentes de um dramaturgo e diretor de teatro belga, Armand Gatti, que fazia criações coletivas. Ele nos encarregou de registrar os ensaios com uma câmera de vídeo, e foi assim que tomamos gosto pela coisa."


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