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São Paulo, segunda-feira, 17 de novembro de 2003

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NELSON ASCHER

Socialismo ou barbárie

Para o inglês, dizem, tudo é permitido, exceto o expressamente proibido. Para o alemão, tudo é proibido, salvo o que tiver sido permitido. Para o italiano, enfim, tudo é permitido, em especial o que for proibido. Substituindo o inglês pela anglosfera, o alemão pela Europa e o italiano pela América Latina, obtém-se uma metáfora que, malgrado remeter a estereótipos, não deixa de ter utilidade. (O resto do mundo se compõe de países onde uma minoria se permite tudo o que proíbe à maioria.)
George Orwell observou que as épocas nas quais prevalecem as armas pesadas são mais autoritárias do que aquelas caracterizadas pelas leves. Embora seja fácil refutar uma generalização dessas, vale mais a pena perguntar qual o caráter de nosso tempo, que parece, à primeira vista, paradoxal. Afinal, se são hoje as nações democráticas que dispõem de armamentos hiperbólicos, são, por seu turno, as forças do obscurantismo que se valem não de mísseis de precisão ou caças-bombardeiros, mas da submetralhadora e de quantidades portáteis de explosivo plástico. A ferramenta preferencial com que, em Ruanda, em 1994, os hutus massacraram cerca de 1 milhão de tútsis foi o facão.
Se liberdade equivale ao fortalecimento do individualismo, então as espingardas, rifles, pistolas e revólveres dos revolucionários americanos, franceses ou de 1848 comprovaram sua importância. Que existissem e pudessem competir com os canhões estatais foi um fato sem dúvida libertador. Essa equação, no entanto, não se aplica indiscriminadamente. Na Segunda Guerra, os partidários da democracia e os das ditaduras lutaram com o mesmo "hardware". Depois vieram as revoltas anticoloniais, e, nelas, a impressão era a de que se retornara à forma prévia de confronto: guerrilheiros mal equipados conquistando a independência ante o equipamento superior dos ocupantes. Só que, aqui, o veredicto histórico ainda está suspenso, pois, enquanto os libertadores nativos logo se revelaram, quase sem exceção, discípulos do autoritarismo, as potências coloniais continuaram democráticas.
A Guerra Fria assume, retrospectivamente, um caráter ainda mais estranho. Principiando como um embate em que uma superpotência liberal e sua rival despótica se enfrentavam equilibradamente com recursos do mesmo tipo, ao terminar sem a batalha nuclear decisiva, não havia discussão acerca de qual lado vencera, algo que ocorreu porque, no meio do caminho, a natureza da conflagração se alterou, passando de um conflito da era industrial para uma disputa da era da informação.
"Era da informação" é um desses lugares-comuns raramente usados com clareza. Tratando-se da Guerra Fria, seu sentido é o seguinte. Guerrear na era industrial implicava tanto produzir soldados e armamentos cada vez mais pesados como transportá-los ao front e mantê-los adequadamente supridos de munição e alimento. Quem o fizesse em maior escala e por mais tempo triunfaria. Na era da informação, o problema se tornou o de desenvolver e integrar "networks", redes de informação e/ou interconexão melhores que as do inimigo. Tanto faz se a arma usada aqui ou ali é leve ou pesada: desde que pertença a uma rede cujos nós se intercomunicam direito, ela é o ponto para o qual confluem com precisão, quando necessário, o peso e a força do conjunto inteiro, convertendo-se, portanto, em parte de um gigantesco armamento que, não mais leve nem pesado, é sobretudo virtual. Foi o sucesso dos EUA em adaptar suas Forças Armadas a uma nova era (criada por eles mesmos) que lhes garantiu a vitória sobre a URSS.
Assim como a indústria pesada se correlaciona com um Estado central dotado de propensões monopolistas, a sociedade interconectada potencializa a autonomia individual. E não só em termos bélicos. Se bem que a economia da Europa já não se fundamente num modelo industrial clássico, suas instituições estatais se apegaram de tal maneira a monopólios diversos que, para preservá-los, o continente tem resistido a entrar realmente na era da informação. Eis um exemplo: o governo francês pretende fundar uma espécie de CNN francófona, ou seja, planeja para o futuro sua emissora noticiosa a cabo quando, devido à internet, a pioneira não passa, na prática, de coisa do passado.
É nesse quadro que o conceito de "guerra assimétrica", o que chamam em geral de terrorismo, surge como alternativa aparentemente viável: um carro-bomba um dia, um piloto camicase no seguinte e, ao que tudo indica, adeus à sociedade informacional, à modernidade e ao conjunto de indivíduos livres, abertamente interconectados.
Para piorar, o terrorismo se assemelha a uma virose. Pressupor que, quanto mais simples um organismo, mais este antecede os complexos leva a concluir que o vírus deve estar entre as mais antigas formas de vida. Segundo algumas teorias, porém, por causa de sua própria simplicidade, ele não é capaz de existir exceto como parasita de organismos complexos e, talvez até nascido destes, o vírus teria uma origem recente. Como o vírus que mata seu portador também morre, a única vitória que os agentes do terror podem alcançar em sua guerra total contra a sociedade moderna se resume no extermínio mútuo.
De acordo com os antiglobalistas reunidos esses dias no Fórum Social Europeu, "um outro mundo é possível". Sim: um mundo sem seres humanos. Não há como interpretar sua aliança tácita com o terrorismo, exceto como a perversão de um velho slogan marxista: uma vez que o socialismo não deu certo, chegou a hora de promoverem a barbárie.


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