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NELSON ASCHER
Socialismo ou barbárie
Para o inglês, dizem, tudo é
permitido, exceto o expressamente proibido. Para o alemão,
tudo é proibido, salvo o que tiver
sido permitido. Para o italiano,
enfim, tudo é permitido, em especial o que for proibido. Substituindo o inglês pela anglosfera, o
alemão pela Europa e o italiano
pela América Latina, obtém-se
uma metáfora que, malgrado remeter a estereótipos, não deixa de
ter utilidade. (O resto do mundo
se compõe de países onde uma
minoria se permite tudo o que
proíbe à maioria.)
George Orwell observou que as
épocas nas quais prevalecem as
armas pesadas são mais autoritárias do que aquelas caracterizadas pelas leves. Embora seja fácil
refutar uma generalização dessas, vale mais a pena perguntar
qual o caráter de nosso tempo,
que parece, à primeira vista, paradoxal. Afinal, se são hoje as nações democráticas que dispõem
de armamentos hiperbólicos, são,
por seu turno, as forças do obscurantismo que se valem não de
mísseis de precisão ou caças-bombardeiros, mas da submetralhadora e de quantidades portáteis
de explosivo plástico. A ferramenta preferencial com que, em
Ruanda, em 1994, os hutus massacraram cerca de 1 milhão de
tútsis foi o facão.
Se liberdade equivale ao fortalecimento do individualismo, então as espingardas, rifles, pistolas
e revólveres dos revolucionários
americanos, franceses ou de 1848
comprovaram sua importância.
Que existissem e pudessem competir com os canhões estatais foi
um fato sem dúvida libertador.
Essa equação, no entanto, não se
aplica indiscriminadamente. Na
Segunda Guerra, os partidários
da democracia e os das ditaduras
lutaram com o mesmo "hardware". Depois vieram as revoltas anticoloniais, e, nelas, a impressão
era a de que se retornara à forma
prévia de confronto: guerrilheiros
mal equipados conquistando a
independência ante o equipamento superior dos ocupantes. Só
que, aqui, o veredicto histórico
ainda está suspenso, pois, enquanto os libertadores nativos logo se revelaram, quase sem exceção, discípulos do autoritarismo,
as potências coloniais continuaram democráticas.
A Guerra Fria assume, retrospectivamente, um caráter ainda
mais estranho. Principiando como um embate em que uma superpotência liberal e sua rival
despótica se enfrentavam equilibradamente com recursos do
mesmo tipo, ao terminar sem a
batalha nuclear decisiva, não havia discussão acerca de qual lado
vencera, algo que ocorreu porque,
no meio do caminho, a natureza
da conflagração se alterou, passando de um conflito da era industrial para uma disputa da era
da informação.
"Era da informação" é um desses lugares-comuns raramente
usados com clareza. Tratando-se
da Guerra Fria, seu sentido é o seguinte. Guerrear na era industrial implicava tanto produzir
soldados e armamentos cada vez
mais pesados como transportá-los ao front e mantê-los adequadamente supridos de munição e
alimento. Quem o fizesse em
maior escala e por mais tempo
triunfaria. Na era da informação,
o problema se tornou o de desenvolver e integrar "networks", redes de informação e/ou interconexão melhores que as do inimigo.
Tanto faz se a arma usada aqui
ou ali é leve ou pesada: desde que
pertença a uma rede cujos nós se
intercomunicam direito, ela é o
ponto para o qual confluem com
precisão, quando necessário, o peso e a força do conjunto inteiro,
convertendo-se, portanto, em
parte de um gigantesco armamento que, não mais leve nem pesado, é sobretudo virtual. Foi o
sucesso dos EUA em adaptar suas
Forças Armadas a uma nova era
(criada por eles mesmos) que lhes
garantiu a vitória sobre a URSS.
Assim como a indústria pesada
se correlaciona com um Estado
central dotado de propensões monopolistas, a sociedade interconectada potencializa a autonomia individual. E não só em termos bélicos. Se bem que a economia da Europa já não se fundamente num modelo industrial
clássico, suas instituições estatais
se apegaram de tal maneira a
monopólios diversos que, para
preservá-los, o continente tem resistido a entrar realmente na era
da informação. Eis um exemplo: o
governo francês pretende fundar
uma espécie de CNN francófona,
ou seja, planeja para o futuro sua
emissora noticiosa a cabo quando, devido à internet, a pioneira
não passa, na prática, de coisa do
passado.
É nesse quadro que o conceito
de "guerra assimétrica", o que
chamam em geral de terrorismo,
surge como alternativa aparentemente viável: um carro-bomba
um dia, um piloto camicase no seguinte e, ao que tudo indica,
adeus à sociedade informacional,
à modernidade e ao conjunto de
indivíduos livres, abertamente interconectados.
Para piorar, o terrorismo se assemelha a uma virose. Pressupor
que, quanto mais simples um organismo, mais este antecede os
complexos leva a concluir que o
vírus deve estar entre as mais antigas formas de vida. Segundo algumas teorias, porém, por causa
de sua própria simplicidade, ele
não é capaz de existir exceto como parasita de organismos complexos e, talvez até nascido destes,
o vírus teria uma origem recente.
Como o vírus que mata seu portador também morre, a única vitória que os agentes do terror podem alcançar em sua guerra total
contra a sociedade moderna se
resume no extermínio mútuo.
De acordo com os antiglobalistas reunidos esses dias no Fórum
Social Europeu, "um outro mundo é possível". Sim: um mundo
sem seres humanos. Não há como
interpretar sua aliança tácita
com o terrorismo, exceto como a
perversão de um velho slogan
marxista: uma vez que o socialismo não deu certo, chegou a hora
de promoverem a barbárie.
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