São Paulo, quinta-feira, 17 de novembro de 2005

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COMIDA

NINA HORTA


Ser ou não ser brasileiro?

Claro que quero escrever sobre livros brasileiros, comida brasileira e comida ao alcance de todos. Bem, na verdade não sou eu que quero, é a lógica, estamos no Brasil, há que se comer e ler o que existe aqui. Por sinal, em se tratando de comida, Gabriela Masciolli, a dona da livraria Mille Foglie, cansou de passar vergonha com os clientes que perguntavam: "Mas onde estão os livros em português?"; e resolveu abrir sua própria editora. Já editou o primeiro, vai partindo para outro.
Não vou mais apertar botões na Amazon, afinal não tem nada a ver conosco, com pequis e com pitangas. Enquanto penso isto, já me levantei, dei uma penteada no cabelo e vou indo compulsivamente para a livraria Cultura para NÃO comprar a caixa de DVDs com a "New Yorker" completa, um objeto de desejo. O que tenho eu com Nova York, deveria comprar DVDs de São Paulo. Tem? Não tem. E precipito meu caminho até a livraria, 4.109 revistas perfeitas, inteiras, desde 1925, com todos os anúncios, todas as modas e designs, todos os cartuns, os escritores que surgiam, nem acredito. Tem pouco de cozinha, mas o que tem é muito bom, M.K.Fisher, Calvin Trillin, Liebling, Anthony Bourdain. Rebecca Mead... (americanos, americanos, americanos...)
Não tem mesmo nada parecido em português? Como a finada revista "O Cruzeiro", com as garotas do Alceu, o Barreto Pinto de cueca, o David Nasser e suas reportagens e a cozinha de Helena Sangirardi? Então, vamos lá, põe no cartão em três vezes. Pronto, já foi, o sentimento é o de ganhar uma boneca querida no Natal.
E do próprio jornal vem uma pauta, pediram a resenha de um livrinho. Ah, deve ser bem brasileiro, jambos e jabuticabas e geléias. O quê? Alexandre Dumas?
É impressionante como os autores saem de moda. No meu tempo de adolescente, em vez de Harry Potter lia-se Alexandre Dumas, pardon, em français, mes amis, "Os Três Mosqueteiros", "O Visconde de Bragellone", "O Conde de Montecristo".
Depois que comecei a gostar de comida, digo, de ler sobre comida, comprei o "Le Grand Dictionnaire de Cuisine", escrito pelo próprio Dumas; era possível um homem tão eclético? Agora vejo que a Jorge Zahar Editor se propõe a lançar em breve uma coleção de notas gastronômicas, afiando as máquinas para mais tarde publicar o interessantíssimo dicionário. O livrinho tem duas partes: "Memórias Gastronômicas", carta de Dumas a seu amigo Jules Janine, e, como contador de histórias, discorre rapidamente sobre três séculos, com graça; seguido de "Pequena História da Culinária", da macieira do Paraíso ao primeiro restaurante de Paris. O livro tem 148 páginas e custa R$ 34.
E os personagens dele me fogem todos, já não sei quem é ninguém, se algum dia soube. Conhecem a imperatriz da tragédia, Mlle Georges, na rua de l"Ouest? E o ator Lockroy, fino e trocista? E Charles de Mornay, um resíduo da velha raça fidalgueira? Mas não importa, lá estão os pés de página acordando as figuras comilonas, que são reis, grandes gastrônomos, duques, ministros. É a história, minha gente, e para variar não é a nossa, mas tem a ver, é o passado de todos, afinal.
Jeffrey Steingarten, o colunista de comida da revista "Vogue" americana, que, lógico, também não é brasileiro, concorda com Dumas num assunto polêmico. (Uma vez eu o entrevistei por telefone, e ele, para me agradar, falava muito em inhame ou cará, dizia que gostava, o mentiroso!) Os dois detestam verduras. "... A salada não é absolutamente uma alimentação natural para o homem, por mais onívoro que seja. Só os ruminantes nasceram para pastar folhas...", escreve Dumas e dá a receita de seu molho que faz salvar o prato malquerido, com anchovas, gema de ovo, azeite, molho de soja...
Para quem gosta de história da comida, é uma boa introdução para o dicionário de Dumas, este em francês.
Eu mesma acabei de ler um livro ótimo, pequeno, de bom formato, que trata de restaurantes e de comer fora em geral. O autor é Stephen Shaw (americano, americano), o livro "Turning the Tables" (virando a mesa). O assunto é o restaurante por dentro e por fora. O autor é um advogado que se descobriu crítico de restaurantes e abriu um site que se tornou famoso. Ensina como conseguir marcar uma mesa em restaurante badalado, mostra os bastidores, fornecedores de comida e controvérsias, o negócio por trás do restaurante, o futuro do comer fora de casa.
Não percam este livro quando aparecer traduzido. Muito sabido e simpático e... americano. É, inglês é o latim novo, não adianta, as pitangas e jabuticabas estão metidas lá no meio da mistura e, como são frágeis e viajam mal, aparecem pouco. Como o assunto não cabe num só artigo, continuo na semana que vem.


@ - ninahort@uol.com.br

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