São Paulo, sábado, 17 de novembro de 2007

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MANUEL DA COSTA PINTO

Constatação do nada


Dois livros de Paulo Ferraz lançados simultaneamente renovam possibilidades de associar poesia e crítica social


Q UANDO ALGUÉM usa a expressão "literatura engajada", raramente se refere à poesia. Em "Que É a Literatura?", Sartre deu razões para recusar à poesia uma idéia de engajamento que reivindicou para a prosa. Vira e mexe, contudo, surgem tentativas de produzir poesia com sentido crítico mais explícito do que o simples -embora fundamental- desvio da linguagem-instrumento (que para Sartre distingue a poesia e define sua vizinhança com a pintura e a música).
Em geral, a poesia politicamente orientada afeta indignação contra a barbárie para afirmar uma radicalidade retórica. Como o último livro de Régis Bonvicino, "Página Órfã", no qual o eterno repetidor dos concretos tenta dar, com ligeiro atraso, o "salto participante" proposto por Décio Pignatari nos anos 60.
Bem diversos são dois livros de Paulo Ferraz lançados simultaneamente: "De Novo Nada" e "Evidências Pedestres". Em ambos há temas sociais e flagrantes das aberrações contemporâneas, como o porteiro mergulhado no mutismo da noite ou o pichador caindo da torre de uma construção celebrada por "representar a suspensão do tempo".
"De Novo Nada" contém um único poema, nos quais diferentes vozes se entrecortam: um narrador que transita pela cidade e consulta uma mendiga quiromante, num fluxo associativo intercalado por devaneios eróticos e ironias sobre as pretensões transformadoras das vanguardas. Com mais de 500 versos, culmina na cena desconcertante da moradora de rua que se cobre com um jornal no qual está impressa a imagem da modelo de um outdoor -os dois rostos se fundindo na "máscara que a massifica".
Em "Evidências Pedestres", a errância urbana (assinalada pelo título tirado de Drummond) se fragmenta em cenas e personagens que podem ser o motorista de ônibus empunhando o câmbio como um cetro, o andar exausto e gracioso da secretária suburbana ou "romeiras de salto alto e meia-sola remendada", prostitutas que "só querem ludibriar o enxofre que está ao pé da porta". O momento mais ácido, contraveneno para o oportunismo estético, é "De uma Crítica Publicada num Suplemento Cultural de Domingo" -paródia de texto jornalístico sobre o artista que transforma um barraco de favela em instalação. Em nenhum momento, porém, Ferraz se coloca a salvo desse mundo reificado, em que "tudo é a um só momento projeto e ruína".
Afinal, o mesmo sujeito que se preocupa com os homens-bomba palestinos será, no instante seguinte, atraído pela moça que se lambuza com um sorvete -dois problemas que, escreve em "Da Utilidade da Poesia (e do Poeta)", "nem minha poesia nem homens como nós podem resolver". Depois de estrear com "Constatação do Óbvio", Paulo Ferraz faz da constatação do nada que nos arrasta e da inutilidade da poesia a melhor forma de resistência.


DE NOVO NADA E
EVIDÊNCIAS PEDESTRES Autor:
Paulo Ferraz
Editora: Selo Sebastião Grifo
Quanto: R$ 20 (88 págs.) cada um
Avaliação: bom



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