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ROMANCE
"Liquidação", 1ª obra do autor após Nobel, volta à dificuldade de apreender a realidade na "era das catástrofes"
Suicida de Kertész mostra o mal como o princípio da vida
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
"Vivemos na era das catástrofes", diz B., personagem elusivo de "Liquidação", primeiro romance escrito pelo húngaro Imre Kertész depois de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 2002. A afirmação ecoa a
propalada "imaginação do desastre", de Henry James, que se liga
ao papel que o mal exercia nas ficções do antigo mestre.
Passados bem mais de cem
anos, o mal não precisa mais ser
imaginado. Ele está bem aqui,
diante de nós. Para B., o mal é o
próprio princípio da vida. Como
portador da catástrofe, o homem
dessa era "não tem destino, não
tem qualidades, não tem caráter".
Não é uma perspectiva alvissareira, decerto, e ainda enseja nova
crise na representação da realidade. Em "Liquidação", Amargo,
amigo e editor de B., discute a
possibilidade de publicar as obras
póstumas do escritor, que cometeu suicídio. Entram em cena a
amante de B., além de dois outros
amigos e a ex-mulher, Judit.
Amargo também empreende
uma busca por um romance perdido de B., uma obra-prima que
ninguém viu, mas que, ao que tudo indica, havia sido composta.
Entretanto, parte da ação é vista
por meio de uma peça de B., encontrada entre seus manuscritos,
após sua morte. Ela dramatiza os
conflitos editoriais e existenciais
suscitados pelo suicídio de B., e
seus personagens são Amargo,
além dos demais citados. Onde
está a realidade?
No início, um narrador introduz a história e apresenta-nos
Amargo: "Imaginemos um homem e, para ele, um nome. Ou, ao
contrário: imaginamos o nome e,
para ele, o homem". Nessa condição supersensível, a realidade não
passa de um "conjunto duvidoso
e confuso de imagens, palavras e
fatos existentes na memória de
Amargo", ou seja, de um personagem que concebemos a partir de
um nome.
A questão epistemológica central em Kertész (que figura em todos os seus livros, sobretudo em
"O Fiasco") é a da apreensão da
realidade. Esse sentimento de irrealidade leva Judit, que esteve
num campo de concentração, a
exclamar noutra peça de B.: "Eu
estive lá. Eu vi. Auschwitz não
existe". Não se deve confundir o
desabafo com a estúpida tese de
muitos, como o presidente do Irã,
Mahmud Ahmadinejad, que afirmam que o Holocausto não existiu. Kertész, que foi prisioneiro
em Auschwitz e em Buchenwald,
na verdade sugere que todas as
histórias são intrinsecamente inenarráveis. Constructos elaborados para emular a vida como num
melodrama, como "A Lista de
Schindler" (que ele abomina),
constituem uma farsa.
A imaginação, que tanto serviu
ao século 19, nas décadas seguintes passou a manter-nos sempre
apartados da realidade. Kertész
foi prisioneiro em Auschwitz, a
realidade bruta e inenarrável;
atravessou os anos de chumbo da
dominação soviética e agora testemunha as ambíguas mudanças
políticas que provocam a "liquidação" generalizada. Nesse estágio, a literatura vai aos poucos se
tornando desnecessária.
O título de seu romance alude à
idéia de encerramento, pois está
relacionado ao fim das atividades
da editora onde Amargo trabalha.
O Estado, que a subvencionou
durante 40 anos, decide não mais
financiá-la. Mas liquidação também remete ao barateio necessário para uma, digamos, "queima
de estoque".
Nossa era é a das catástrofes,
mas também a da pechincha e do
barateamento. Trata-se de uma
idéia no fundo cômica. B. chama
sua peça de "comédia". Para ele, o
homem trágico já não existe. Restou-lhe apenas a "consciência trágica do destino". Os sobreviventes, ou seja, todos nós, somos figuras cômicas, em essência.
Liquidação
Autor: Imre Kertész
Tradutor: Paulo Schiller
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (112 págs.)
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