São Paulo, segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

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GUILHERME WISNIK

Demônio ex machina


Presos ao cotidiano, muitas vezes não percebemos a fronteira tênue entre o familiar e o sinistro

COM UMA frota de automóveis de aproximadamente 5,7 milhões, o município de São Paulo apresenta a incrível proporção de um veículo para cada 1,92 habitante. É que a taxa de crescimento da frota motorizada cresceu, nos últimos cinco anos, oito vezes mais que a população, dentro de uma mancha urbana que pouco se modificou. Tomemos como padrão um carro compacto e econômico.
Numa situação hipotética, com essa frota na rua em fila indiana, teríamos uma grande minhoca de lata com 21,6 mil km de comprimento, sendo que a soma das vias carroçáveis do município gira em torno de 16 mil km. Como mostram os números da prefeitura ("município em dados"), se no final dos anos 60 o modo coletivo representava 70% das viagens motorizadas na cidade, hoje o modo individual predomina.
Psicologicamente, o carro é uma máquina capaz de nos transportar de forma ágil e confortável, permitindo ao condutor o dom do livre arbítrio, isto é, a possibilidade de mudar de planos (e de trajeto) ao sabor das solicitações cada vez mais flutuantes da vida contemporânea.
Ocorre que essa máquina não trafega por ondas imateriais como as de telefonia. Assim, para se deslocar "livremente" pela cidade, uma pessoa mobiliza uma carroceria motorizada que ocupa 6 m2 de via pública, pesa uma tonelada, polui o ar e consome litros de combustível fóssil não renovável. Com capacidade para atingir 160 km/h, esse carro se arrasta hoje, nos fins de tarde, a uma média de 15 km/h, numa cidade que tem, nesse período, 120 km de congestionamento diário.
Será que o evidente desperdício de tempo e combustível (entre outros bens menos quantificáveis) ainda justifica essa pseudo liberdade? Que fração da riqueza gerada por cada pessoa, naquela jornada de trabalho, é consumida em tamanho desperdício? Presos ao cotidiano, não percebemos a fronteira tênue entre o familiar e o sinistro.
No conto "La Autopista del Sur", Julio Cortázar descreve um engarrafamento monstro na volta de um feriado, na auto-estrada que leva a Paris. Ligadas aos seus compromissos, as pessoas mantêm, ainda por um bom tempo, uma angústia impaciente: esbravejando, buzinando, agarrando-se a notícias vãs e desencontradas. No entanto, o tempo vai passando sem que nada se altere, alternando dias e noites de calor, frio, chuva. Cativas da sua própria materialidade, as pessoas (designadas pelas marcas dos seus carros) se organizam em grupos para conseguir provisões, transformando os automóveis em depósitos, enfermarias, motéis etc., criando uma teia de relações nova. Como na vida "normal", alguns namoram, engravidam, outros morrem...
Um dia, porém, a coluna de carros começa a se mexer. De uma hora para a outra, cada um tem de assumir o seu posto original e seguir em frente em sua cápsula. Não há tempo para hesitações ou despedidas. No movimento mecânico da estrada, todos vão se perdendo rapidamente de vista à medida que retornam, em linha reta, para a sua vida particular. Aquela que sempre julgaram ser a mais natural do mundo.


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