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GUILHERME WISNIK
Demônio ex machina
Presos ao cotidiano, muitas vezes não percebemos a fronteira tênue entre o familiar e o sinistro
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COM UMA frota de automóveis
de aproximadamente 5,7 milhões, o município de São
Paulo apresenta a incrível proporção de um veículo para cada 1,92 habitante. É que a taxa de crescimento
da frota motorizada cresceu, nos últimos cinco anos, oito vezes mais
que a população, dentro de uma
mancha urbana que pouco se modificou. Tomemos como padrão um
carro compacto e econômico.
Numa situação hipotética, com
essa frota na rua em fila indiana, teríamos uma grande minhoca de lata
com 21,6 mil km de comprimento,
sendo que a soma das vias carroçáveis do município gira em torno de
16 mil km. Como mostram os números da prefeitura ("município em
dados"), se no final dos anos 60 o
modo coletivo representava 70%
das viagens motorizadas na cidade,
hoje o modo individual predomina.
Psicologicamente, o carro é uma
máquina capaz de nos transportar
de forma ágil e confortável, permitindo ao condutor o dom do livre arbítrio, isto é, a possibilidade de mudar de planos (e de trajeto) ao sabor
das solicitações cada vez mais flutuantes da vida contemporânea.
Ocorre que essa máquina não trafega por ondas imateriais como as de
telefonia. Assim, para se deslocar "livremente" pela cidade, uma pessoa
mobiliza uma carroceria motorizada que ocupa 6 m2 de via pública, pesa uma tonelada, polui o ar e consome litros de combustível fóssil não
renovável. Com capacidade para
atingir 160 km/h, esse carro se arrasta hoje, nos fins de tarde, a uma
média de 15 km/h, numa cidade que
tem, nesse período, 120 km de congestionamento diário.
Será que o evidente desperdício
de tempo e combustível (entre outros bens menos quantificáveis)
ainda justifica essa pseudo liberdade? Que fração da riqueza gerada
por cada pessoa, naquela jornada de
trabalho, é consumida em tamanho
desperdício? Presos ao cotidiano,
não percebemos a fronteira tênue
entre o familiar e o sinistro.
No conto "La Autopista del Sur",
Julio Cortázar descreve um engarrafamento monstro na volta de um
feriado, na auto-estrada que leva a
Paris. Ligadas aos seus compromissos, as pessoas mantêm, ainda por
um bom tempo, uma angústia impaciente: esbravejando, buzinando,
agarrando-se a notícias vãs e desencontradas. No entanto, o tempo vai
passando sem que nada se altere, alternando dias e noites de calor, frio,
chuva. Cativas da sua própria materialidade, as pessoas (designadas
pelas marcas dos seus carros) se organizam em grupos para conseguir
provisões, transformando os automóveis em depósitos, enfermarias,
motéis etc., criando uma teia de relações nova. Como na vida "normal", alguns namoram, engravidam, outros morrem...
Um dia, porém, a coluna de carros
começa a se mexer. De uma hora
para a outra, cada um tem de assumir o seu posto original e seguir em
frente em sua cápsula. Não há tempo para hesitações ou despedidas.
No movimento mecânico da estrada, todos vão se perdendo rapidamente de vista à medida que retornam, em linha reta, para a sua vida
particular. Aquela que sempre julgaram ser a mais natural do mundo.
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