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X se apoiou em intensidade, coragem e emoção
JOÃO MARCELLO BÔSCOLI
especial para a Folha
Você acha que X cantava bem?
Acha? Pois você tinha que ver ela
cozinhando... Era um almoço melhor que o outro. Feijoada, tortilha, bobó de camarão, pratos mineiros.
Certa vez um amigo foi almoçar
pela primeira vez em casa e, surpreso com o sabor da comida, fez o
elogio: "Como você cozinha bem,
X". E ela respondeu, sorrindo:
"Obrigada. Você precisa me ouvir
cantando...".
Outra coisa que ela fazia muito
bem era dirigir. Tinha o pé meio
pesado, mas a tangência nas curvas e o tempo de mudança das
marchas eram impressionantes,
pode acreditar.
A cara dos guardas quando percebiam quem estavam multando é
algo memorável. Ficavam perplexos. E ela ria...
Lembro muito dela rindo, afinal
tinha "riso frouxo", como dizia.
Frouxo e indisfarçável. Quando ia
fazer compras, colocava uns óculos grandes para ficar em paz, mas,
na primeira risada, formava-se
uma pequena confusão.
"Meu sorriso é mais famoso que
eu", comentou certa vez no Mercado Municipal.
Björk me disse: "X vai a lugares
que eu gostaria de ir, mas não tenho coragem. Ela se entrega de um
jeito intenso, emocional e definitivo". Fiquei abismado de ver uma
garota da Islândia perceber de maneira tão lúcida a tríade criativa de
X: intensidade, coragem e emoção.
Não era intoxicada de fórmulas e
hipocrisia, sempre foi ela mesma e
não "o que poderia dar certo".
Declarou o que quis sem temer
consequências e, acima de tudo,
colocou sua inteligência a serviço
da classe artística e do país.
Todo o seu prestígio foi usado
em questões polêmicas, como a
defesa dos direitos autorais e artísticos (chamados por ela de "tortos" autorais), além de shows políticos envolvendo personalidades
então perseguidas, como Betinho
e Fernando Henrique Cardoso.
Importante: fez tudo de coração e
não "porque daria mídia".
Nunca temeu a polícia ou os políticos, seguiu sempre seus instintos, mesmo que eles a levassem para uma delegacia. Passou vários
meses grávida, fazendo show e cuidando da casa sozinha, demonstrando uma capacidade absurda
de trabalhar.
Bom, sua capacidade de criar casos também era absurda. Quando
descobriu, por exemplo, que não
desaparecia dentro de um "órgão
censor" federal por ser muito famosa, deixou a todos malucos.
Lembro de discussões homéricas
nas quais as pessoas próximas imploravam pra ela "pegar leve"
nos interrogatórios. Ela ria.
X foi algo mais importante que
"a maior cantora do Brasil", ela
entrou para a história da vida das
pessoas.
Quase todas que conheço lembram onde estavam quando ela
partiu. É um dado devastador para
mim. Não deixa dúvidas que ela
extrapolou os limites de cantora
para se transformar num ícone
pop brasileiro. Que mulher...
João Marcello Bôscoli, 25, é músico e filho de
Elis Regina.
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