São Paulo, sábado, 18 de janeiro de 1997.

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X se apoiou em intensidade, coragem e emoção

JOÃO MARCELLO BÔSCOLI
especial para a Folha

Você acha que X cantava bem? Acha? Pois você tinha que ver ela cozinhando... Era um almoço melhor que o outro. Feijoada, tortilha, bobó de camarão, pratos mineiros.
Certa vez um amigo foi almoçar pela primeira vez em casa e, surpreso com o sabor da comida, fez o elogio: "Como você cozinha bem, X". E ela respondeu, sorrindo: "Obrigada. Você precisa me ouvir cantando...".
Outra coisa que ela fazia muito bem era dirigir. Tinha o pé meio pesado, mas a tangência nas curvas e o tempo de mudança das marchas eram impressionantes, pode acreditar.
A cara dos guardas quando percebiam quem estavam multando é algo memorável. Ficavam perplexos. E ela ria...
Lembro muito dela rindo, afinal tinha "riso frouxo", como dizia. Frouxo e indisfarçável. Quando ia fazer compras, colocava uns óculos grandes para ficar em paz, mas, na primeira risada, formava-se uma pequena confusão.
"Meu sorriso é mais famoso que eu", comentou certa vez no Mercado Municipal.
Björk me disse: "X vai a lugares que eu gostaria de ir, mas não tenho coragem. Ela se entrega de um jeito intenso, emocional e definitivo". Fiquei abismado de ver uma garota da Islândia perceber de maneira tão lúcida a tríade criativa de X: intensidade, coragem e emoção.
Não era intoxicada de fórmulas e hipocrisia, sempre foi ela mesma e não "o que poderia dar certo". Declarou o que quis sem temer consequências e, acima de tudo, colocou sua inteligência a serviço da classe artística e do país.
Todo o seu prestígio foi usado em questões polêmicas, como a defesa dos direitos autorais e artísticos (chamados por ela de "tortos" autorais), além de shows políticos envolvendo personalidades então perseguidas, como Betinho e Fernando Henrique Cardoso. Importante: fez tudo de coração e não "porque daria mídia".
Nunca temeu a polícia ou os políticos, seguiu sempre seus instintos, mesmo que eles a levassem para uma delegacia. Passou vários meses grávida, fazendo show e cuidando da casa sozinha, demonstrando uma capacidade absurda de trabalhar.
Bom, sua capacidade de criar casos também era absurda. Quando descobriu, por exemplo, que não desaparecia dentro de um "órgão censor" federal por ser muito famosa, deixou a todos malucos.
Lembro de discussões homéricas nas quais as pessoas próximas imploravam pra ela "pegar leve" nos interrogatórios. Ela ria.
X foi algo mais importante que "a maior cantora do Brasil", ela entrou para a história da vida das pessoas.
Quase todas que conheço lembram onde estavam quando ela partiu. É um dado devastador para mim. Não deixa dúvidas que ela extrapolou os limites de cantora para se transformar num ícone pop brasileiro. Que mulher...


João Marcello Bôscoli, 25, é músico e filho de Elis Regina.

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