|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
A minissérie e a intromissão da história
BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA
Estaria bem a minissérie
"Um Só Coração" não fosse
o excesso de intenção didática. A
São Paulo dos anos 1920, caracterizada como uma Nova York em
miniatura, é, de fato, um espaço
ficcional privilegiado.
Uma cidade emergindo célere
para o progresso (melhor dizendo, para aquilo que se imaginava
ser a modernidade no começo do
século 20), com traços de metrópole em dimensões ainda humanas e levas de novos habitantes a
formar um quadro social diverso. É um cenário mais do que formatado pelo cinema -daí a referência a Nova York, cidade tantas vezes ficcionalizada.
Há arroubos de cinema na minissérie de Maria Adelaide Amaral, sobretudo em uma certa concepção chique, estetizada de reconstituição histórica que lembra ora os filmes de época produzidos pela dupla Merchant &
Ivory, ora o glamour do início do
século evocado por James Cameron em "Titanic" -neste caso, o
filme inspirou até mesmo o caso
da moça rica que se rebela contra
um casamento arranjado (a Yolanda, de Ana Paula Arósio) em
favor do amor à primeira vista
com um pobretão honesto e galã
(o Martim, de Erik Marmo).
As imagens que emergem desse tipo de esforço de reconstrução de um passado que, além de
"fiel", também quer ser lindo revestem de uma beleza às vezes
cosmética em excesso realidades
como a pobreza dos cortiços onde viviam os imigrantes -como
o núcleo formado pelos personagens da família do anarquista Ernesto (Celso Frateschi).
Mas, enquanto o cinema tem a
liberdade, pelo menos em tese,
de utilizar a competência técnica
de forma mais crítica, na TV os
acertos da produção, sobretudo
aquelas que se dedicam a reconstruir uma época, têm o peso de
uma lição escolar.
Modernistas
Assim como a cenografia inventa uma São Paulo linda, nova-iorquizada, a pesquisa histórica
que se interpola na ficção a golpes de machadada sugere uma
cidade falsamente polarizada entre os anarquistas e os salões elegantes da burguesia.
No entremeio, os modernistas,
esses reais, gente de alguma sensibilidade política, que se mobiliza para enfrentar o delegado e tirar o pobre Ernesto da cadeia,
mas que resolve criar a Semana
de Arte Moderna num momento
de tédio.
OK, é uma possibilidade entre
outras de entender esse período,
e uma minissérie de TV tem tanto direito quanto qualquer outra
obra de ficção de oferecer sua interpretação para um período histórico. Mas seria prudente, então, abandonar o tom escolar,
discursivo com que reveste as intromissões da história.
Se não, tem o mesmo efeito de
um livro paradidático de má
qualidade: conduzir uma história estropiada por uma trilha ficcional tíbia. E o risco da ficção
frouxa "Um Só Coração" também correrá, se insistir muito
mais no casal Martim-Yolanda.
biabramo.tv@uol.com.br
Texto Anterior: Novelas da semana Próximo Texto: Consciente coletivo Índice
|