São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2004

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CRÍTICA

A minissérie e a intromissão da história

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

Estaria bem a minissérie "Um Só Coração" não fosse o excesso de intenção didática. A São Paulo dos anos 1920, caracterizada como uma Nova York em miniatura, é, de fato, um espaço ficcional privilegiado.
Uma cidade emergindo célere para o progresso (melhor dizendo, para aquilo que se imaginava ser a modernidade no começo do século 20), com traços de metrópole em dimensões ainda humanas e levas de novos habitantes a formar um quadro social diverso. É um cenário mais do que formatado pelo cinema -daí a referência a Nova York, cidade tantas vezes ficcionalizada.
Há arroubos de cinema na minissérie de Maria Adelaide Amaral, sobretudo em uma certa concepção chique, estetizada de reconstituição histórica que lembra ora os filmes de época produzidos pela dupla Merchant & Ivory, ora o glamour do início do século evocado por James Cameron em "Titanic" -neste caso, o filme inspirou até mesmo o caso da moça rica que se rebela contra um casamento arranjado (a Yolanda, de Ana Paula Arósio) em favor do amor à primeira vista com um pobretão honesto e galã (o Martim, de Erik Marmo).
As imagens que emergem desse tipo de esforço de reconstrução de um passado que, além de "fiel", também quer ser lindo revestem de uma beleza às vezes cosmética em excesso realidades como a pobreza dos cortiços onde viviam os imigrantes -como o núcleo formado pelos personagens da família do anarquista Ernesto (Celso Frateschi).
Mas, enquanto o cinema tem a liberdade, pelo menos em tese, de utilizar a competência técnica de forma mais crítica, na TV os acertos da produção, sobretudo aquelas que se dedicam a reconstruir uma época, têm o peso de uma lição escolar.

Modernistas
Assim como a cenografia inventa uma São Paulo linda, nova-iorquizada, a pesquisa histórica que se interpola na ficção a golpes de machadada sugere uma cidade falsamente polarizada entre os anarquistas e os salões elegantes da burguesia.
No entremeio, os modernistas, esses reais, gente de alguma sensibilidade política, que se mobiliza para enfrentar o delegado e tirar o pobre Ernesto da cadeia, mas que resolve criar a Semana de Arte Moderna num momento de tédio.
OK, é uma possibilidade entre outras de entender esse período, e uma minissérie de TV tem tanto direito quanto qualquer outra obra de ficção de oferecer sua interpretação para um período histórico. Mas seria prudente, então, abandonar o tom escolar, discursivo com que reveste as intromissões da história.
Se não, tem o mesmo efeito de um livro paradidático de má qualidade: conduzir uma história estropiada por uma trilha ficcional tíbia. E o risco da ficção frouxa "Um Só Coração" também correrá, se insistir muito mais no casal Martim-Yolanda.

biabramo.tv@uol.com.br


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