São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Farsa, tragédia e comédia em palco italiano


O Nobel italiano Dario Fo, 77, um dos maiores críticos do governo de Silvio Berlusconi, promove sátira ao comportamento do primeiro-ministro em nova peça

Na montagem "A Anomalia de Duas Cabeças", ao lado de sua mulher, Fo ataca o líder italiano e sua posição de apoio ao colega russo Vladimir Putin



JASON HOROWITZ
DO "NEW YORK TIMES", DE ROMA

As cortantes sátiras de Dario Fo sobre as autoridades e os poderosos o conduziram ao topo das letras italianas, um pináculo decorado com um prêmio Nobel. Em sua nova peça, no entanto, o autor escolheu para usar como alvo aquele que é seu alvo favorito, o primeiro-ministro Silvio Berlusconi (que na semana passada perdeu sua imunidade, em decisão da Corte Constitucional da Itália, e agora pode ser julgado em processo no qual é acusado de corrupção), de uma altura consideravelmente mais modesta. Aproximadamente 75 centímetros, para ser exato.

"No começo da tirada esquerdista ["A Anomalia de Duas Cabeças'] explica-se que Berlusconi passou por uma cirurgia de emergência na qual foi transplantada parte do cérebro do presidente russo Vladimir Putin para a cabeça dele. (...) Isso foi inspirado pela amizade entre os líderes, que tendem a usar roupas combinadas durante suas conferências de cúpula"

"Membros do partido político de Berlusconi tentaram obter uma cópia do texto de "A Anomalia de Duas Cabeças" antes mesmo de saberem que era sobre o primeiro-ministro"


Fo passou mais de metade de uma encenação lotada de sua peça "A Anomalia de Duas Cabeças" retratando Silvio Berlusconi como uma espécie de anão tirânico.
"Não somos tão cruéis com relação a ele", disse Fo, que trabalha na peça e continua ágil mesmo aos 77 anos de idade. "Dizemos somente que ele é uma espécie de anão, como se fosse uma marionete."
Para criar o efeito, Fo fica em pé em um fosso por trás do palco principal, com os seus braços escondidos por pequenas calças listradas e as suas mãos manipulando pequenos sapatos lustrosos.
E como se o sapateado dele pelo palco na forma de uma espécie de boneco de ventríloquo libertado não fosse absurdo o bastante, a premissa da peça envolve uma reviravolta que acaba conseguindo ser ainda mais surreal.
No começo da tirada esquerdista em larga medida improvisada e de estrutura muito livre contra o primeiro-ministro conservador, explica-se que Berlusconi passou por uma cirurgia de emergência, na qual parte do cérebro do presidente russo Vladimir V. Putin foi transplantada para a cabeça dele. Isso acontece depois que terroristas tchetchenos atacam os dois líderes a tiros enquanto eles se preparam para dormir praticando caratê em quimonos que são combinados.

Laços russo-italianos
A sátira foi inspirada pela amizade entre os líderes, que tendem a usar roupas combinadas durante suas conferências de cúpula (chapéus de pele em dachas russas e calças de linho em vilas da Sardenha).
Berlusconi enfureceu muitos políticos europeus em uma entrevista coletiva no mês passado ao defender as ações de Putin contra os separatistas da Tchetchênia.
Além daquilo que Fo menciona no palco como o número do "Dr. Jekyll e Mr. Hyde", com referências ao gosto que Berlusconi veio a adquirir pela vodca e memórias dos tempos da KGB, a peça coloca em destaque uma preocupação muito real na vida cultural contemporânea da Itália.
Críticos como Fo sentem que o poder político e a imensa influência cultural de Berlusconi -o primeiro-ministro é um magnata da mídia e a pessoa mais rica de seu país- criam um conflito de interesse que acaba servindo de ponto de origem à censura.
"É um momento difícil para a sátira", disse ele no camarim, antes do espetáculo. "Berlusconi tem suas mãos em toda parte. A sátira precisa ter a tragédia como base. Bem, a Itália agora é verdadeiramente trágica. Nunca estivemos tão por baixo."
E o mesmo se aplica a Berlusconi, na peça, o que o teria deixado muito insatisfeito com a forma pela qual é retratado.
"Há um comediante italiano que trabalha dentro de um buraco", declarou o primeiro-ministro durante uma entrevista, "para criar a impressão de um anão demoníaco".
"Não acredito que eu seja um anão", afirmou.
"A nova geração come melhor e pratica mais esportes que eu, mas sou um italiano médio."
Berlusconi também argumentou que a esquerda "ataca o governo e especialmente o primeiro-ministro da Itália continuamente".
Fo rebateu dizendo que ele e outros satiristas são as verdadeiras vítimas. Disse que membros do partido político de Berlusconi haviam tentado obter uma cópia do texto de "A Anomalia de Duas Cabeças" -que ele interpreta ao lado de Franca Rame, sua mulher e constante colaboradora. "Antes mesmo que soubessem que se tratava de Berlusconi", afirma Fo.
Fo disse ter recusado entregar o texto a uma reunião de diretores de teatro que ele classifica como "politicamente motivada", em Milão, embora afirme que a produção da peça não foi atrapalhada de maneira alguma.

Sátiras
Funcionários próximos a Berlusconi dizem que até mesmo a acusação de que o primeiro-ministro interfere é absurda, apontando que há muita sátira sobre ele na Itália. As primeiras páginas dos jornais italianos rotineiramente exibem caricaturas do primeiro-ministro e charges nas quais ele é satirizado. Os programas de humor e sátira da TV italiana dão grande destaque a Berlusconi com regularidade.
Mas os críticos geralmente alegam que há muitos outros lugares em que a sátira não encontra lugar. Nas últimas semanas, o presidente italiano se recusou a assinar uma lei aprovada pelos aliados de Berlusconi no Parlamento Italiano que possibilitaria uma futura expansão das propriedades do primeiro-ministro no setor de mídia, enquanto as emissoras estatais de televisão suspenderam os programas de alguns humoristas depois que o grupo midiático controlado por Silvio Berlusconi os classificou como "propaganda política" e ameaçou realizar abertura de processos.
"Eles não os censuraram, simplesmente; os enxotaram", afirmou Fo.
A família de Silvio Berlusconi controla grandes editoras e empresas de distribuição de filmes, jornais e três dos sete canais nacionais de televisão italianos. Três dos demais canais são controlados pelo governo.

O espetáculo
Apesar de todas as suas graves acusações, "A Anomalia de Duas Cabeças" tem uma levada quase de vaudeville. O espetáculo consiste em larga medida de piadas de gordo, baixinho e careca sobre o primeiro-ministro e seus assessores. Há também ataques praticamente escatológicos não somente à política de Silvio Berlusconi mas também à sua vida pessoal e à sua ética.
E é exatamente por isso o que os fãs de Fo esperam; é isso o que desejam.
Em uma das noites do espetáculo, os compradores no saguão do teatro arremataram cerca de 5.000 (por volta de R$ 17.700) em produtos relacionados a Dario Fo, como seus livros, suas pinturas e seus vídeos.
"O Papa e a Bruxa", uma sátira a outro dos alvos prediletos de Fo, vendeu bastante. Os produtos de maior sucesso, no entanto, são mesmo aqueles que atacam Berlusconi.
No começo do espetáculo, Rame disse à platéia que o casal planejara descansar e se recuperar pacificamente de algumas doenças, mas que as novas leis adiando o julgamento de Berlusconi por corrupção e expandindo seus interesses de negócios os haviam trazido de volta.
"Não tínhamos escolha a não ser voltar ao palco", afirmou.

Retorno
Os 1.400 espectadores que lotaram o teatro para aquela apresentação pareciam gratos por isso. O espetáculo de três horas de duração vendeu todos os ingressos para sua temporada de uma semana na capital italiana, e o casal saiu em turnê pela Itália para mais outras 50 apresentações.
No entanto, dentre os espectadores havia quem considerasse que a peça sequer fosse necessária.
"A essa altura, a realidade tornou-se sátira", disse Augusto Derrone, 59.
"A Itália é sempre mais surrealista, e a sátira não tem espaço para fazer seu trabalho."

Tradução Paulo Migliacci

Texto Anterior: Rivalidade: TVs enfrentam domínio global nas novelas
Próximo Texto: Fo é processado por sátira a Berlusconi
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.