São Paulo, sexta-feira, 18 de fevereiro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Os grandes contos do ouro e do amor

Desde os primeiros momentos de sua existência na face da Terra, o ser humano adotou a ficção como meio de expressar o sonho e a reflexão sobre o mundo e sobre si mesmo. Das civilizações que marcaram o começo literário da humanidade, três relatos se destacaram e sobrevivem até hoje. Apesar de fragmentários e, quase sempre, fantásticos, constituem o núcleo histórico mais importante do pensamento que acompanha o homem desde as cavernas até o mundo digital em que hoje vivemos.
Ao contrário da Bíblia, notadamente em seu primeiro Testamento, e da mitologia grega ampliada de alguma forma pela cultura latina, os extraordinários relatos de "As Mil e Uma Noites", que, genericamente, podem ser considerados como a mitologia da cultura árabe, não têm como base, princípio, meio e fim, a relação entre Deus (ou deuses) e o homem. No relato atribuído a Sherazade, a mulher que adiou a morte por mil e uma noites, encantando o sultão com suas histórias, a relação, os conflitos e os cenários são exclusivamente humanos. E o próprio destino que nelas intervém é também um destino humano, nunca divino. Numa só e bastante palavra: é o Destino.
Daí a diferença essencial entre os três relatos, seguramente, dos mais antigos da cultura universal. No Velho Testamento, os personagens principais são um senhor e seu povo. Na mitologia greco-latina, os senhores se misturam com o povo. Nos dois casos, o destino da humanidade e o de cada homem em particular são condicionados por sua relação com o elemento superior, a divindade, monoteísta na Bíblia, politeísta na mitologia.
"As Mil e uma Noites" diferem e até certo ponto agridem a concepção religiosa dos dois relatos anteriores. Trata-se de uma rapsódia profana, em que os homens, em si mesmos, cumprem um papel às vezes divinatório, subordinados que estão ao Destino, que não chega a ser um deus, pois nada exige dos homens, mas faz deles um objeto manobrado sem lei nem rito.
Como na Bíblia e na mitologia greco-romana, alguns personagens e episódios se destacam, entrando em nosso imaginário, penetrando em nosso cotidiano e sendo lembrados insensivelmente pelas recorrências e experiências que cada um encontra nas graças e desgraças dos personagens bíblicos, como Jó e suas desditas e Davi na sua luta contra Golias. Ou dos personagens mitológicos, como Orfeu descendo aos infernos e Prometeu acorrentado no penhasco, com seu fígado devorado eternamente por uma águia.
Assim, alguns contos de "As Mil e Uma Noites" tornaram-se mais conhecidos do que outros, funcionando como encantadoras metáforas da aventura humana em busca de dois objetivos que, sob aparências muitas vezes contraditórias, condicionam a busca fundamental do homem: o amor e a fortuna.
Enquanto a Bíblia e a mitologia não podem ser analisadas sem se atentar para o caráter religioso, quase teocrático, de seus episódios, no grande fabulário árabe o aspecto confessional está ausente. São homens que se envolvem com homens, e o caráter mágico de alguns deles não se deve a nenhuma divindade, mas ao Destino, que funciona não como um deus, mas como um homem insensível e poderoso, dono de tudo e de todos, que não precisa ser adorado nem bajulado para reger desta ou de outra forma a vida de cada um ou de todos.
Os relatos da Bíblia e da mitologia, criados e crescidos em torno do Mediterrâneo, são voltados para a relação com a divindade, formando um conjunto de regras morais cuja finalidade última é o seio de Abraão, pai dos crentes, ou o Olimpo, onde reina Júpiter, deus ótimo e máximo. Nos contos orientais, prevalece a luta pela riqueza e pelo amor. São duas finalidades precisas que regem as aventuras extraordinárias de Ali Baba, de Aladim, de Sindbá, do califa de Bagdá.
Há que vestir os amantes com roupas cobertas de pedrarias, há que habitar palácios que brilham como diamantes, leitos incrustados de pérolas e rubis, cavernas abarrotadas de tesouros. O imaginário árabe, para compensar talvez a realidade em que se exprime, não entende a felicidade na miséria, não aceita o amor em casebres. São necessários muito vinho, muita seda, perfume e luz.
Dominando os caminhos de acesso ao ouro e ao amor, o Destino funciona não como o Deus bíblico ou os deuses mitológicos, mas como um poderoso senhor que nada pede em troca. Basta-se. E, ao bastar-se, exerce o poder de forma arbitrária, insensível à prece, à moral, a qualquer interesse consciente ou inconsciente. Nesse particular, os contos de "As Mil e Uma Noites" reduzem a aventura humana aos próprios homens, condenando-os ou exaltando-os.
Apesar do colorido oriental, da paisagem encharcada de areia, camelos, palmeiras, tâmaras e beduínos, são fábulas que se integraram ao homem ocidental, acompanhando-o há séculos. Seus personagens nada desejam, nada nos cobram. Dão apenas o exemplo e o preço do ouro e do amor.


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