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CARLOS HEITOR CONY
Os grandes contos do ouro e do amor
Desde os primeiros momentos de sua existência na face
da Terra, o ser humano adotou a
ficção como meio de expressar o
sonho e a reflexão sobre o mundo
e sobre si mesmo. Das civilizações
que marcaram o começo literário
da humanidade, três relatos se
destacaram e sobrevivem até hoje. Apesar de fragmentários e,
quase sempre, fantásticos, constituem o núcleo histórico mais importante do pensamento que
acompanha o homem desde as
cavernas até o mundo digital em
que hoje vivemos.
Ao contrário da Bíblia, notadamente em seu primeiro Testamento, e da mitologia grega ampliada de alguma forma pela cultura latina, os extraordinários relatos de "As Mil e Uma Noites",
que, genericamente, podem ser
considerados como a mitologia
da cultura árabe, não têm como
base, princípio, meio e fim, a relação entre Deus (ou deuses) e o homem. No relato atribuído a Sherazade, a mulher que adiou a
morte por mil e uma noites, encantando o sultão com suas histórias, a relação, os conflitos e os cenários são exclusivamente humanos. E o próprio destino que nelas
intervém é também um destino
humano, nunca divino. Numa só
e bastante palavra: é o Destino.
Daí a diferença essencial entre
os três relatos, seguramente, dos
mais antigos da cultura universal. No Velho Testamento, os personagens principais são um senhor e seu povo. Na mitologia
greco-latina, os senhores se misturam com o povo. Nos dois casos, o
destino da humanidade e o de cada homem em particular são condicionados por sua relação com o
elemento superior, a divindade,
monoteísta na Bíblia, politeísta
na mitologia.
"As Mil e uma Noites" diferem e
até certo ponto agridem a concepção religiosa dos dois relatos anteriores. Trata-se de uma rapsódia profana, em que os homens,
em si mesmos, cumprem um papel às vezes divinatório, subordinados que estão ao Destino, que
não chega a ser um deus, pois nada exige dos homens, mas faz deles um objeto manobrado sem lei
nem rito.
Como na Bíblia e na mitologia
greco-romana, alguns personagens e episódios se destacam, entrando em nosso imaginário, penetrando em nosso cotidiano e
sendo lembrados insensivelmente
pelas recorrências e experiências
que cada um encontra nas graças
e desgraças dos personagens bíblicos, como Jó e suas desditas e Davi
na sua luta contra Golias. Ou dos
personagens mitológicos, como
Orfeu descendo aos infernos e
Prometeu acorrentado no penhasco, com seu fígado devorado
eternamente por uma águia.
Assim, alguns contos de "As Mil
e Uma Noites" tornaram-se mais
conhecidos do que outros, funcionando como encantadoras metáforas da aventura humana em
busca de dois objetivos que, sob
aparências muitas vezes contraditórias, condicionam a busca
fundamental do homem: o amor
e a fortuna.
Enquanto a Bíblia e a mitologia
não podem ser analisadas sem se
atentar para o caráter religioso,
quase teocrático, de seus episódios, no grande fabulário árabe o
aspecto confessional está ausente.
São homens que se envolvem com
homens, e o caráter mágico de alguns deles não se deve a nenhuma divindade, mas ao Destino,
que funciona não como um deus,
mas como um homem insensível
e poderoso, dono de tudo e de todos, que não precisa ser adorado
nem bajulado para reger desta ou
de outra forma a vida de cada um
ou de todos.
Os relatos da Bíblia e da mitologia, criados e crescidos em torno
do Mediterrâneo, são voltados
para a relação com a divindade,
formando um conjunto de regras
morais cuja finalidade última é o
seio de Abraão, pai dos crentes,
ou o Olimpo, onde reina Júpiter,
deus ótimo e máximo. Nos contos
orientais, prevalece a luta pela riqueza e pelo amor. São duas finalidades precisas que regem as
aventuras extraordinárias de Ali
Baba, de Aladim, de Sindbá, do
califa de Bagdá.
Há que vestir os amantes com
roupas cobertas de pedrarias, há
que habitar palácios que brilham
como diamantes, leitos incrustados de pérolas e rubis, cavernas
abarrotadas de tesouros. O imaginário árabe, para compensar
talvez a realidade em que se exprime, não entende a felicidade
na miséria, não aceita o amor em
casebres. São necessários muito
vinho, muita seda, perfume e luz.
Dominando os caminhos de
acesso ao ouro e ao amor, o Destino funciona não como o Deus bíblico ou os deuses mitológicos,
mas como um poderoso senhor
que nada pede em troca. Basta-se.
E, ao bastar-se, exerce o poder de
forma arbitrária, insensível à prece, à moral, a qualquer interesse
consciente ou inconsciente. Nesse
particular, os contos de "As Mil e
Uma Noites" reduzem a aventura
humana aos próprios homens,
condenando-os ou exaltando-os.
Apesar do colorido oriental, da
paisagem encharcada de areia,
camelos, palmeiras, tâmaras e beduínos, são fábulas que se integraram ao homem ocidental,
acompanhando-o há séculos.
Seus personagens nada desejam,
nada nos cobram. Dão apenas o
exemplo e o preço do ouro e do
amor.
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