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CINEMA TRÉPLICA
Benigni arrisca tornar o Holocausto uma ficção
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Em artigo publicado ontem, Murilo Gabrielli discute e questiona
alguns aspectos do texto escrito
por mim na Ilustrada, sobre "A
Vida É Bela", por ocasião de seu
lançamento.
É uma feliz oportunidade para
esclarecer certos aspectos do que
foi escrito ali.
Embora concorde que é uma maneira de ver as coisas, não acredito
que aspectos éticos e estéticos sejam tão facilmente dissociáveis,
como pretende Gabrielli. Em primeiro lugar, porque distinguir o
falso do verdadeiro é uma atribuição da estética.
A tendência de transformar o
Holocausto em espetáculo, inaugurada por "A Lista de Schindler",
não coloca questões meramente
estéticas (que versariam sobre a
eficácia do filme), nem publicitárias (a difusão do Holocausto serviria para nos lembrar sobre o que
ocorreu nos campos de extermínio
durante a Segunda Guerra).
Em relação ao Holocausto, isso é
tão mais delicado quando é possível lembrar que o documentário
"Arquitetura da Destruição" demonstra precisamente os fundamentos estéticos do nazismo. É um
ideal de beleza e higiene que justificou o extermínio de seres desviantes (isto é, dados como tal por
seus algozes), fossem doentes
mentais, judeus ou ciganos.
Em segundo lugar, está longe de
ser esquecido o episódio do chamado "revisionismo histórico",
que pretendeu sob vários pretextos passar a borracha sobre o episódio e atribuí-lo à propaganda judaica.
Ainda há pouco tempo, Le Pen, o
líder da extrema-direita francesa,
queria ver no Holocausto apenas
"um detalhe" da Segunda Guerra.
Prudência
Quando Roberto Benigni situa
uma comédia num campo de extermínio, portanto, é no mínimo
prudente pôr o pé atrás. Quando se
decide fazer "gags" em um campo
de concentração, de duas, uma: ou
se assume o esquecimento dos fatos lá ocorridos -porque se tornaram distantes, porque já não nos
parecem importantes ou porque se
pretende minimizá-los-, ou favorece-se a sua lembrança.
O filme de Roberto Benigni é tão
inusitado, tão surpreendente, que
não fecho questão por uma hipótese ou pela outra. O que considero, e
que talvez não soube comunicar, é
que me parece mais adequado preservar locais como os campos de
extermínio da vulgarização. Ontem, Spielberg contou ali uma história virtuosa, introduzindo o glamour em Auschwitz; hoje, Benigni
faz uma comédia; amanhã, por que
não, pode-se muito bem pensar
em fazer uma novela das oito, comerciais de sabonete, o que for.
Tudo isso tem o efeito de dar ao
real um ar de irrealidade, isto é, de
levar-nos a crer, ao longo do tempo, que o Holocausto tem muito
mais de imaginação do que de realidade e, no final das contas, muito
mais de falso do que de verdadeiro
(que foi, no fim das contas, o intento dos historiadores revisionistas).
Por bem-intencionadas que sejam, essas empreitadas engendram o risco de acrescentar ainda
algo mais à irrealidade e ao absurdo do mundo contemporâneo, que
já me parecem suficientemente
grandes.
Dito isso, o filme de Benigni permite muitas outras leituras. Entre
elas, parece-me sedutora a hipótese de um homem que responde ao
absurdo do mundo com um absurdo ainda maior. Talvez, passado o
oba-oba publicitário do Oscar, seja
mais fácil conversar sobre elas.
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