São Paulo, Quinta-feira, 18 de Fevereiro de 1999
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CINEMA TRÉPLICA

Benigni arrisca tornar o Holocausto uma ficção

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Em artigo publicado ontem, Murilo Gabrielli discute e questiona alguns aspectos do texto escrito por mim na Ilustrada, sobre "A Vida É Bela", por ocasião de seu lançamento.
É uma feliz oportunidade para esclarecer certos aspectos do que foi escrito ali.
Embora concorde que é uma maneira de ver as coisas, não acredito que aspectos éticos e estéticos sejam tão facilmente dissociáveis, como pretende Gabrielli. Em primeiro lugar, porque distinguir o falso do verdadeiro é uma atribuição da estética.
A tendência de transformar o Holocausto em espetáculo, inaugurada por "A Lista de Schindler", não coloca questões meramente estéticas (que versariam sobre a eficácia do filme), nem publicitárias (a difusão do Holocausto serviria para nos lembrar sobre o que ocorreu nos campos de extermínio durante a Segunda Guerra).
Em relação ao Holocausto, isso é tão mais delicado quando é possível lembrar que o documentário "Arquitetura da Destruição" demonstra precisamente os fundamentos estéticos do nazismo. É um ideal de beleza e higiene que justificou o extermínio de seres desviantes (isto é, dados como tal por seus algozes), fossem doentes mentais, judeus ou ciganos.
Em segundo lugar, está longe de ser esquecido o episódio do chamado "revisionismo histórico", que pretendeu sob vários pretextos passar a borracha sobre o episódio e atribuí-lo à propaganda judaica.
Ainda há pouco tempo, Le Pen, o líder da extrema-direita francesa, queria ver no Holocausto apenas "um detalhe" da Segunda Guerra.

Prudência
Quando Roberto Benigni situa uma comédia num campo de extermínio, portanto, é no mínimo prudente pôr o pé atrás. Quando se decide fazer "gags" em um campo de concentração, de duas, uma: ou se assume o esquecimento dos fatos lá ocorridos -porque se tornaram distantes, porque já não nos parecem importantes ou porque se pretende minimizá-los-, ou favorece-se a sua lembrança.
O filme de Roberto Benigni é tão inusitado, tão surpreendente, que não fecho questão por uma hipótese ou pela outra. O que considero, e que talvez não soube comunicar, é que me parece mais adequado preservar locais como os campos de extermínio da vulgarização. Ontem, Spielberg contou ali uma história virtuosa, introduzindo o glamour em Auschwitz; hoje, Benigni faz uma comédia; amanhã, por que não, pode-se muito bem pensar em fazer uma novela das oito, comerciais de sabonete, o que for.
Tudo isso tem o efeito de dar ao real um ar de irrealidade, isto é, de levar-nos a crer, ao longo do tempo, que o Holocausto tem muito mais de imaginação do que de realidade e, no final das contas, muito mais de falso do que de verdadeiro (que foi, no fim das contas, o intento dos historiadores revisionistas).
Por bem-intencionadas que sejam, essas empreitadas engendram o risco de acrescentar ainda algo mais à irrealidade e ao absurdo do mundo contemporâneo, que já me parecem suficientemente grandes.
Dito isso, o filme de Benigni permite muitas outras leituras. Entre elas, parece-me sedutora a hipótese de um homem que responde ao absurdo do mundo com um absurdo ainda maior. Talvez, passado o oba-oba publicitário do Oscar, seja mais fácil conversar sobre elas.


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