São Paulo, Quinta-feira, 18 de Março de 1999
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SHOW
Chico

Adriana Zehbrauskas/Folha Imagem
Chico Buarque no palco do Palace, pouco antes do ensaio para o show que estréia hoje



O compositor fala do show que estréia hoje no Palace, em SP, diz que está compondo melhor e pergunta, com humor: "Será que FHC acha que eu sou o Itamar da música?"


MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor interino de Opinião

"Será que FHC acha que eu sou o Itamar da música?", perguntou um bem-humorado Chico Buarque de Holanda, durante a entrevista que concedeu anteontem à noite à Folha. Chico ironizava as críticas que tem recebido do presidente da República, embora a política já não pareça ocupar em sua vida o espaço de outros tempos.
A partir de amanhã, durante sete semanas, ele estará de volta ao palco em São Paulo. O show que leva ao Palace é uma apresentação do CD "as cidades", recheada com uma oportuna revisão de antigas canções -"umas que eu achei que o disco puxava, outras para o público poder cantar", diz.
"As Cidades" -ou "as cidades", em minúsculas, como grafado no disco- foi recebido com certa frieza por parte da crítica, embora se ouça nele um compositor em pleno domínio de seu repertório e um letrista exímio, agora mais claramente contaminado pela experiência literária.
Gilberto Gil viu em "Iracema", do novo CD, uma relação com "Bye, Bye Brasil". Parece haver, de fato, em "as cidades", um lirismo desencantado, uma espécie de tradução poética da vertigem brasileira nesses tempos pós-utópicos.
Chico fala de música, de política, comenta o livro de Caetano Veloso ("Verdade Tropical") e conta qual foi a reação de seu pai, o historiador Sergio Buarque de Holanda, quando disse a ele: "Papai, estou lendo "Raízes do Brasil"".

Folha - O CD "as cidades" parece atravessado por uma espécie de lirismo desencantado, como se a musa evocada pelas canções estivesse desalojada, inviabilizada pelas próprias canções. É como se você não pudesse mais cantar o Brasil de Tom Jobim, ao qual o disco obviamente se filia. Qual o alcance desse desencanto?
Chico Buarque -
Talvez esse desencanto seja uma constante na minha música. Quando essa tristeza foi assinalada por mais de uma pessoa, como uma característica desse disco, eu me perguntei se essa não é uma característica permanente da minha obra. Eu não tenho discos especialmente alegres.
Eu procurei nesse disco uma tonalidade mais grave; há mais canções lentas do que em obras anteriores. Eu hoje domino melhor meu instrumento e me sinto um músico muito melhor do que há 30 anos. Talvez haja no disco a presença e a ausência de Tom Jobim, ao mesmo tempo.
Folha - Há um registro onírico no disco, que muitas vezes surge como pesadelo, como uma vertigem, da qual você aliás parece ter consciência quando afirma, no título de uma canção, "Sonhos Sonhos São".
Chico -
Com certeza, o tom de "Sonhos Sonhos São" é vertiginoso. Mas, por outro lado, há também um certo humor presente lá. Essa canção talvez tenha a ver com o clima da minha literatura. A idéia dessa canção é um pouco literária. Eu pretendia transformar em música uma idéia dificilmente musicável, mais literária, que é a idéia do sonho. Eu queria fazer uma música que estivesse dentro do sonho, que traduzisse a sua sensação, e não apenas que falasse dele. Isso remete a "Estorvo" e "Benjamin", meus romances.
Folha - A vertigem dessa canção, que não está ligada mais ao Brasil, mas a cidades aleatórias e cambiáveis, não seria uma versão contemporânea da vertigem de "Bye, Bye, Brasil", que você compôs no início dos anos 80?
Chico -
Isso é engraçado. O Gil, conversando recentemente comigo, comparou "Iracema" a "Bye, Bye, Brasil". Talvez o disco todo permita essa passagem. Não sei.
Folha - Mudando de assunto, por que é que os presidentes da República nunca gostam muito de você?
Chico -
(gargalha)
Folha - O presidente Fernando Henrique tem criticado você e manifestado preferência por Caetano Veloso, embora diga que vocês dois e o Gil sejam os três grandes da MPB. Que história é essa?
Chico -
Normalmente, quando o político fala de música popular, está fazendo política. Amanhã é capaz que o Lula venha assistir meu show. É um ato político. Eu duvido sinceramente que o Lula goste tanto da minha música. Ele vindo, vai desmentir isso, mas eu não acredito. Já passei por isso várias vezes.
No caso do Fernando Henrique, o fato de ele gostar mais do Caetano e do Gil pode ser mesmo uma apreciação estética, mais do que política. Afinal, o Fernando Henrique nem é tão bom político assim. O Antonio Carlos Magalhães é muito melhor político do que ele. Está há muito mais tempo no métier e não diria uma coisa que não fosse conveniente politicamente.
Folha - O fato de o projeto do Fernando Henrique ser, em linhas gerais internacionalista, apostando num certo tipo de modernização via abertura, talvez o leve a se identificar mais com as posições do Caetano, que sempre esteve mais para a internacionalização, a indústria cultural, o livre mercado. Você talvez seja visto como representante de um pensamento que ele considera condenado, o nacionalismo, a esquerda...
Chico -
Será que ele pensa que eu sou o Itamar da música? (gargalha) Acho que não chega a esse ponto também. Se ele me considerasse um Itamar, a reação dele comigo seria mais violenta. Ele me vê mais próximo do Lula, do PT, embora eu não seja do PT. Mas acho engraçado o nervosismo do governo com o Itamar. Sempre houve um certo desdém pelo Itamar e, de repente, todo o ódio se voltou contra ele no círculo mais próximo do presidente.
Folha - Você passa a impressão de que depois da eleição presidencial de 89, entre Collor e Lula, se desencantou da política, de que continua se posicionando e participando meio a contragosto.
Chico -
Aquele foi um momento crucial, em que havia chance real de vitória de uma frente de centro-esquerda. Teoricamente, o próprio Fernando Henrique estaria nessa frente. Até o PSDB timidamente apoiou o Lula. Estavam ali representantes de todas as correntes que lutaram contra a ditadura. Eu sempre me vi integrado a movimentos mais amplos, de mudanças amplas, não apenas partidários. Nessa última eleição, eu votei no Lula porque discordo das propostas do Fernando Henrique, mas, no fundo, não queria ver o Lula eleito agora. Seria impossível governar. Olhando agora para trás, até mesmo em 89, se o Lula fosse eleito, dificilmente ele governaria. Estão surgindo revelações sobre restrições militares à eventual posse de Lula em 89.
Eu quis em 98 apenas manifestar meu desacordo com isso, mas sem a ilusão de estar participando minimamente de um movimento, porque não existe mais essa possibilidade. Talvez houvesse em 89, mas hoje até isso eu coloco em dúvida.
Folha - Você publicou "Estorvo" em 91. É um romance que aponta para um profundo mal-estar na civilização brasileira. Em que medida o livro foi uma maneira de responder, solitariamente, não exatamente à decepção política, mas a um desencanto com um projeto de país que se frustrou?
Chico -
Não foi uma reação à política. Há uma tendência generalizada de politizar o que eu faço. As pessoas acham que eu sou mais politizado do que realmente sou. Quando eu procuro o caminho da literatura é porque talvez esteja se desgastando meu trabalho com a música. Eu já vinha há um bom tempo sem vontade de fazer música. A literatura para mim foi um caminho anterior à música. Eu entrei na música por acaso. Estudava arquitetura, escrevia e fazia música por brincadeira.
Folha - Nos anos 50, com a bossa nova, e também nos 60, a música popular foi uma espécie de catalisador de uma série de demandas ou de aspirações coletivas. Parecia haver uma utopia coletiva em relação ao Brasil.
Chico -
Nos anos 50 havia mesmo um projeto coletivo, ainda que difuso, de um Brasil possível, antes mesmo de haver a radicalização de esquerda dos anos 60. O Juscelino, que de esquerda não tinha nada, chamou o Oscar Niemeyer, que por acaso era comunista, e continua sendo, para construir Brasília. Isso é uma coisa fenomenal. Se você pensar, em contraposição, na década seguinte, quando foi construído o Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo, aquele monstro neoclássico no Morumbi, você percebe a diferença.
Brasília não é condenável por ter sido construída. Ela foi construída sustentada numa idéia daquele Brasil que era visível para todos nós. Inclusive nós, que estávamos fazendo música, teatro etc. Aquele Brasil foi cortado evidentemente em 64. Além da tortura, de todos os horrores de que eu poderia falar, houve um emburrecimento do país. A perspectiva do país foi dissipada pelo golpe.
Folha - Mas até o AI-5, a cultura foi de certa forma preservada.
Chico -
Foi, é verdade. Em 64 fecharam sindicatos, perseguiram estudantes, cassaram políticos etc., mas nenhum teatro foi fechado. Não havia censura institucional. Eu tive uma única música censurada nesse período. O governo, até 68, incomodou pouco a cultura. Depois foi aquele Deus nos acuda.
Folha - Sobre esse período, comentando o livro do Caetano, "Verdade Tropical", você disse que teria vontade de escrever o lado B dessa história. Você poderia adiantar algumas faixas desse lado B?
Chico -
Essa foi uma resposta para me livrar de jornalistas. Eu sou um ficcionista, acho chato escrever memórias, isso não me atrai.
Folha - Mas o livro do Caetano não é de memórias apenas, é um livro que pretende interpretar o período.
Chico -
Há coisas ali no livro do Caetano... não é que eu discorde. Às vezes, eu vejo que vivemos os mesmos fatos, antes mesmo de nos conhecermos, sob prismas coincidentes. Às vezes, embora eu entenda o ponto de vista dele, tenho em relação aos fatos que ele menciona pontos de vista inteiramente diferentes. Digo, poxa, interessante que ele tenha interpretado assim, eu vejo diferente, mas não é que haja alguma mentira no livro, não há.
Folha - Você ainda tem contato com os amigos de geração de seu pai (o historiador Sergio Buarque de Holanda, autor de "Raízes do Brasil", morto em 82), com o Antonio Candido, o Décio de Almeida Prado? Qual a sua ligação com eles e com seu pai, do ponto de vista intelectual?
Chico -
Eu não tenho contato com esses amigos de meu pai. Tratei eles sempre com muita cerimônia. Eu tinha uma espécie de temor reverencial por essas pessoas.
Eu tinha esse temor até em relação à biblioteca do meu pai. Fui com o tempo me aproximando da biblioteca e não dos amigos. Nunca tive intimidade com o Antonio Candido. Tenho por ele uma admiração muito grande, um carinho. É um tio. Fui mais tarde conhecer o trabalho de crítica literária do Antonio Candido, mas quando já não morava mais na casa de meus pais.
Mais tarde também fui ler os livros de meu pai. Eu me lembro de ter dito: "Papai, estou lendo "Raízes do Brasil". E ele: "Não, não lê, não. Lê "Visão do Paraíso", que é muito melhor".

Show: Chico Buarque em As Cidades Quando: estréia hoje; quinta, às 21h30, sexta e sábado, às 22h, e domingo, às 19h; até 2/5 Onde: Palace (al. dos Jamaris, 213, Moema, São Paulo, SP, tel. 011/531-4900) Quanto: de R$ 35 a R$ 75 (quinta e domingo) e de R$ 40 a R$ 80 (sexta e sábado)


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