São Paulo, sábado, 18 de maio de 2002

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"O MITO DO MAESTRO"

Livro de colunista britânico alia erudição e fofoca para desvendar a situação da regência musical

Norman Lebrecht derruba batutas consagradas

IRINEU FRANCO PERPETUO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

"A final de contas", perguntou o cômico norte-americano Jerry Seinfeld, em episódio do seriado televisivo que levava o seu nome, "o que é que um regente realmente faz?".
A resposta honesta a essa questão enganadoramente ingênua é, hoje em dia, cada vez mais embaraçosa, e talvez fique ainda mais difícil depois da leitura de "O Mito do Maestro", do britânico Norman Lebrecht, 54, colunista do "Daily Telegraph".
Livros sobre regentes costumam ser coletâneas de hagiografias, com comparações de gravações e glorificações de seres que são vistos como os semideuses da música, não raramente colocando em segundo plano os compositores, a serviço dos quais eles supostamente deveriam estar.
Nada mais distante da abordagem de Lebrecht, que virou referência sobre as mazelas que afetam a música erudita ao publicar em 96 "When the Music Stops Managers, Maestros and the Corporate Murder of Classical Music" (reeditado depois como "Who Killed Classical Music?").
Em "When the Music Stops", Lebrecht demonstra como o poder dos regentes, aliado à cobiça dos "managers", inflacionou os cachês de astros, levando orquestras e teatros à bancarrota.
"O Mito do Maestro", de 1992, é publicação anterior, investiga a construção da aura em torno dessa carreira. Nele, o autor não economiza palavras para dizer que o maestro é mito "artificialmente criado por um propósito não musical e fomentado por necessidade comercial".
Herói de elite, o regente responderia a necessidades de identificação de indivíduos do sexo masculino das classes abastadas, daí, talvez, o insucesso nessa carreira de negros e mulheres, e a imposição não-escrita de que a homossexualidade fosse sempre ocultada.

Divisão de tarefas
Mesclando erudição, reportagem e fofoca, o autor constrói um amplo apanhado que começa no século 19, quando começou a se acentuar a divisão de tarefas entre regente e compositor.
Iniciando com Hans von Bülow, o homem que cedeu tudo a Richard Wagner (inclusive sua mulher, Cosima Liszt), e chegando até os anos 90, Lebrecht constrói um painel no qual há, esporadicamente, heróis, como o "mago" Arthur Nikisch e Georg Solti.
Estão lá Gustav Mahler, com seu tirânico, porém revolucionário regime em Viena, abolindo o costume do aplauso entre os movimentos das sinfonias; Stokowski, moldando sua imagem pública e o som da Orquestra da Filadélfia; e Arturo Toscanini, "criança não amada que exigia ser obedecida", um paradoxo por ter sido "Grande Ditador" numa arte e numa sociedade que derramaram sangue, suor e lágrimas no esforço mortal por livrar o mundo de grandes ditadores", um antifascista que combatia Hitler e Mussolini, mas lhes copiava os métodos.

Karajan
Na relação entre regentes e nazismo, Lebrecht louva o talento musical de Furtwängler, lamentando ter ele se deixado manipular pela propaganda hitlerista; o retrato de Herbert von Karajan, que dominou a cena musical européia no pós-guerra, é, contudo, bem menos complacente.
Inscrito duas vezes no partido nazista, Karajan era o maestro que Goering usava para espezinhar Goebbels, protetor de Furtwängler. "As acusações contra ele eram as mais graves feitas contra qualquer músico nazista", afirma o autor.
Ele chegou a ficar proibido de trabalhar logo depois do final da Segunda Guerra Mundial.
Lebrecht o compara a Hitler em sua sede de dominação. Mais rico e poderoso do que qualquer regente precedente, Karajan tinha, para o autor britânico, uma "imagem de cartão-postal da estética musical", o que dava às suas gravações uma uniformidade "entorpecedora".
A partir dele, os regentes passam a ganhar cada vez mais (há uma instrutiva tabela de cachês), na proporção direta em que reduzem suas atuações à frente das orquestras que dizem comandar. Consequência: a superficialidade das interpretações, que, aliada à carência de jovens talentos, causa o que Norman Lebrecht não hesita em diagnosticar como crise na regência.
Na busca incessante pelo poder, os maestros teriam conseguido uma posição temporariamente forte. "A história, no entanto, está cheia de advertências para pequenas minorias que se aferram ao poder", adverte.
Apocalíptico, Lebrecht chega a falar no final da história da regência. Para ele, os "novos maestros" seriam hoje as pessoas que realmente decidem a vida musical de um teatro ou orquestra-funcionários públicos, "conselheiros artísticos", agentes de concerto e intermediários de patrocínio.
Sintomaticamente, o último perfil do livro não é de um regente, mas de Ronald Wilford, presidente da Cami (Columbia Artists Management Inc.). Graças ao controle de mais de uma centena de maestros, Wilford "rege os regentes" e é, para Lebrecht, quem na verdade empunha a batuta no mundo musical de hoje.


O Mito do Maestro     
Autor: Norman Lebrecht
Editora: Civilização Brasileira
Preço: R$ 50 (571 pág.)



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