São Paulo, quarta-feira, 18 de maio de 2005

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58º FESTIVAL DE CANNES

Em "Broken Flowers", americano subverte sistema hollywoodiano com "road movie" misturado à tradição da comédia clássica

Jarmusch faz crônica do envelhecimento

ALCINO LEITE NETO
ENVIADO ESPECIAL A CANNES

Ninguém esperava que a primeira comédia da competição do Festival de Cannes viesse pelas mãos de... Jim Jarmusch! "Broken Flowers" (flores partidas), exibido ontem, foi uma das melhores surpresas da mostra até agora. Na sala superlotada do Palácio dos Festivais, a platéia de críticos compenetrados explodiu de rir várias vezes e aplaudiu com satisfação o novo filme do diretor norte-americano de 52 anos.
Certo, "Broken Flowers" é no fundo uma crônica bastante melancólica sobre o envelhecimento, a solidão e as relações complicadas entre homens e mulheres. Mas ninguém consegue conter o riso ao ver as atribulações do personagem interpretado por Bill Murray e ao se deparar com os tipos extravagantes vividos por Sharon Stone, Frances Conroy, Jessica Lange, Tilda Swinton, Julie Delpy e Chloë Sevigny -todas elas deliciosas. "Broken Flowers" é dedicado ao importante diretor francês Jean Eustache (1938-81), de "La Maman et la Putain".
O humor sempre compareceu no cinema de Jarmusch. Mas, neste filme, ele é determinante, nos diálogos e nas situações. O cineasta reúne a sua linguagem minimalista e muito pessoal -com raízes no underground e no cinema de autor europeu- à tradição da comédia clássica do cinema americano. Será preciso, agora, achar um lugar para Jarmusch perto de Howard Hawks, Leo McCarey e Billy Wilder.
"Não tive pressões para tornar a narrativa deste filme mais fácil e compreensível. Ele é inteiramente do modo como queria fazê-lo", afirmou Jarmusch em Cannes. Ele reclamou do isolacionismo americano, sobretudo cultural. "Creio que Bush só viajou para fora dos EUA depois que se tornou presidente. Os americanos vivem muito isolados e voltados para si mesmos. O que é ser um verdadeiro americano? Os índios são verdadeiros americanos? Todo mundo vem de algum outro lugar", disse ele na entrevista, ao lado dos atores Bill Murray, Tilda Swinton e Julie Delpy.

"Conversão"
É curioso que o Festival de Cannes deste ano testemunhe uma certa conversão ao classicismo de ao menos dois grandes diretores "marginais" em relação ao sistema hollywoodiano -o outro é o canadense David Cronenberg, com "O Anjo da Morte".
Excelentes cineastas, ninguém melhor do que eles para mostrar aos "profissionais da profissão" cinematográfica (nas palavras de Godard) como se faz um bom e legítimo filme americano. Em ambos os casos, porém, a conversão ao clássico não é completa, e nem poderia ser, já que são dois diretores emblemáticos do alto modernismo no cinema. Os filmes possuem uma série de fraturas voluntárias na representação e terminam sem conciliar o espectador consigo mesmo.
Murray faz Don Johnston, um Don Juan em final de carreira, que recebe a notícia de que tem um filho de 19 anos e que o rapaz está indo ao seu encontro. A notícia chega numa carta muito feminina, escrita em papel cor-de-rosa por uma ex-namorada, que não revela a sua identidade.
Com a ajuda de um amigo metido a detetive, Don descobre onde vivem suas antigas mulheres e vai ao encontro delas. O filme transforma-se, então, numa espécie de "road movie", especialidade de Jarmusch, embalado por músicas etíopes. Os encontros com as ex-mulheres são o melhor do filme, construídos à base de "leitmotivs" (como as flores e as portas de entrada), outra marca do cinema de Jarmusch.
Murray está muito bem no papel de um personagem meditativo, que muito lentamente vai se dando conta de que o tempo passou, a velhice bateu à porta e ele está só, muito só.


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