São Paulo, quarta-feira, 18 de maio de 2005

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MARCELO COELHO

A arte de preencher cupons

Um castigo comum nas escolas de antigamente consistia em preencher várias páginas de caderno com a mesma frase. Podia ser auto-acusatória ("Nunca mais jogarei giz na cabeça da professora"), edificante ("O bom aluno ama seus pais e sua pátria") ou mnemônica ("A Mesopotâmia fica entre o Tigre e o Eufrates").
Apelo à imaginação para dar esses exemplos. Nunca tinha ficado copiando cem vezes a mesma frase -até recentemente, pois caí na asneira de fazer um cartão preferencial numa grande rede de supermercados, que passou a me infernizar com promoções.
É assim que não sei quantos reais em compras me dão direito a uns tantos papeizinhos, que devo preencher antes de "depositá-los", como dizem, na "urna" do sorteio.
"Qual o supermercado que dá a você milhões em prêmios?" Respondo corretamente, com letra caprichada. Modéstia à parte, não é uma pergunta difícil. Mas isso não basta. Como eles acreditam que eu posso ganhar -otimismo de que não compartilho- , é preciso que eu ponha no papel o meu nome e o meu endereço, com o CEP, "de preferência". Na linha de baixo, o telefone, ou melhor, os telefones. O de casa, o do escritório, o celular.
Imagino o pessoal do supermercado em pânico. "Nossa, ele ganhou! Contatem-no imediatamente!" A ligação cai na secretária. O desespero toma conta dos premiadores. "O vôo para Paris parte em duas horas! Como é que ele não veio retirar a passagem? O celular! O celular!"
Mas eu não pude atender o telefone porque estava preenchendo mais formulários. Para me inscrever no programa de descontos progressivos da Farmácia Drogalev, pediram-me o CPF e o número do cartão de crédito, que tive dificuldade em fazer caber nos quadradinhos correspondentes. Posso ser bom em preenchimento de cupons, mas não é que eu seja um gênio nisso.
Desisto da farmácia. Volto aos papeizinhos do supermercado. São uns 30, talvez. Falta colocar o meu e-mail e o RG em todos. Faz sentido. Pode haver outro Marcelo que se apresente como ganhador de uma cafeteira ou de um vale-compras na seção de perfumaria, e o supermercado não há de querer complicações com a Justiça. Eles mal sabem do que sou capaz.
Respiro fundo, completo o último formulário e volto ao início deste artigo. Entre a velha punição escolar e a atividade a que tenho direito agora, como possuidor do cartão preferencial do supermercado, a diferença é pequena. Está na faixa do 0,00001% de chance que eu tenho de ganhar um prêmio que não me interessa.
Mas essa diferença é tudo: uma longínqua esperança de ganho transforma a chatice do castigo num voluntário momento de grafomania.
Vem ao caso uma passagem do "Tom Sawyer", de Mark Twain. Era um sábado de calor e o menino estava encarregado de caiar uma interminável cerca de madeira. Passa um amigo de Tom, rindo dele ou (não me lembro direito) dirigindo-lhe palavras de compaixão.
Nosso herói responde com astúcia: está se divertindo imensamente com a tarefa. Ninguém imagina como é interessante caiar uma cerca. Tamanha é a propaganda, que logo se forma uma fila de meninos, prontos a pagar a Tom em troca do privilégio de trabalhar também.
Em outro livro antigo -"A Linguagem no Pensamento e na Ação", de S. I. Hayakawa-, narrava-se uma fábula parecida. Duas cidadezinhas paupérrimas eram escolhidas para um programa federal de desenvolvimento. Os habitantes da primeira cidade recebiam um montante em dinheiro a que se dera o nome de "mesada", "ajuda emergencial" ou coisa parecida. Na segunda cidade, os recursos foram apresentados como "investimento", "prêmio de estímulo à microempresa", "empréstimo" e por aí afora.
Não é difícil imaginar o desfecho da historinha, que simplifiquei bastante. A cidade que recebeu as verbas sob o nome de "investimento" soube prosperar e só teve fortalecida sua auto-estima. A outra, objeto de humilhante esmola coletiva, mergulhou mais na miséria.
Aqui, como em "Tom Sawyer", é fácil reconhecer a velha cultura do pragmatismo americano, que não por acaso inventou a publicidade, as relações públicas e... o "politicamente correto".
Em princípio, a idéia não é absurda. Palavras contam muito na prática. Uma bela mulher, aspirante à carreira de modelo, não terá sucesso se mantiver um nome de batismo como Hermengarda ou Durvalina.
O problema é termos agora de pedir desculpa às Hermengardas e Durvalinas. Estou reforçando o preconceito em torno das portadoras desse nome? Mas nossa modelo, que trocou de nome, está reforçando o preconceito também. Ela está certa ou errada? Correta ou incorreta? Talvez exista sempre um fundo de incorreção em toda correção política, uma vez que lutar contra um preconceito significa também reconhecê-lo.
Daí, creio, a conseqüência mais perversa do "politicamente correto". Seus possíveis benefícios ficam em segundo plano; o que se alimenta é a vontade de policiar, de censurar, de descobrir sempre novas incorreções -no tom de voz, no olhar, no gesto de quem fala... Cartilhas e manuais se transformam rapidamente em meios de perseguição e exclusão, mais do que em instrumentos de igualdade e de entendimento.
Quem quiser melhorar o quadro que experimente mudar o nome da coisa. Em vez de "cartilha do politicamente correto", pode-se inventar outro título. Não tenho sugestões a dar. O governo poderia organizar um concurso, com farta distribuição de cupons e prêmios ao vencedor. É sempre uma maneira de manter as pessoas ocupadas, impedindo-as, como diziam as velhas professoras, de pensar em bobagem. Elas bem que entendiam de cartilha.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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