São Paulo, sexta-feira, 18 de maio de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

Elis Regina e a castidade

Antes de Elis, havia um espaço nebuloso, como nos primeiros séculos da galáxia

NÃO FAZ muito tempo, fiz parte de uma comissão julgadora de textos universitários sobre história e escrevi uma crônica a respeito.
Para 90% dos trabalhos apresentados, o mundo teria começado a partir de Elis Regina. Antes dela, havia um espaço nebuloso, uma zona gasosa como nos primeiros séculos da galáxia da qual a Terra foi formada.
Getúlio Vargas, Napoleão, Jesus Cristo, JK, Tiradentes, Carmen Miranda, Pedro Álvares Cabral, Hitler, Leonardo Da Vinci e o barão do Rio Branco viviam amontoados na mesma época e no mesmo espaço, mais ou menos como as diversas espé- cies de dinossauros nos começos da formação geológica do nosso planeta.
Não parece, mas, a julgar pela perplexidade de grande parte da mídia provocada por alguns pronunciamentos do papa na sua recente visita, Bento 16 teria inventado a castidade ao pedir que os jovens aguardassem o casamento para iniciar a vida sexual.
Nada mais anacrônico e contra o processo histórico do que a exaltação de uma virtude exclusiva dos monastérios medievais.
Num comentário feito na CBN, no dia seguinte à declaração do papa, tive a audácia de lembrar que o preceito da castidade vem lá de trás, do decálogo que Moisés, séculos antes de Cristo e de Bento 16, trouxe do monte Sinai, sendo o sexto dos dez mandamentos que procuraram dar uma ordem mais social do que religiosa não apenas ao povo hebreu que fugia da escravidão no Egito mas que passou ao judaísmo e foi absorvido integralmente pelo cristianismo.
Recebi e-mails furibundos de ouvintes estarrecidos pelo fato de lembrar um mandamento que, junto com os outros nove, tentaram formar a civilização ocidental. Não matarás, não roubarás, não levantarás falso testemunho, honrarás pai e mãe, não pecarás contra a castidade, não desejarás a mulher do próximo (por sinal, dois dos mandamentos da legislação de Moisés referem-se ao mesmo assunto).
O decálogo não foi modificado por Cristo ao fundar a religião que leva seu nome. Muitos séculos depois, Lutero fez a reforma protestante, que é considerada o começo da era moderna no ocidente. Também não mexeu nos dez mandamentos, e os diversos ramos das igrejas nascidas da Reforma fizeram os mesmos, nada acrescentando e nada eliminando das chamadas tábuas da lei.
Se um matemático afirmasse em declaração pública que dois mais dois são quatro, acredito que ninguém deveria ficar espantado. Newton e Einstein, cada qual em seu tempo, copidescaram Euclides, mas não chegaram a mexer no básico, no dois mais dois são quatro.
Evidente que os mandamentos de Moisés não têm força matemática, não formam uma certeza absoluta, pertencem ao domínio pantanoso da moral e do social.
Mas são referências antigas que atravessaram o tempo e, se não criaram uma sociedade ideal, sempre serão lembradas em épocas confusas como a nossa.
Alguns historiadores e pensadores atribuem os mandamentos mosaicos à realidade do povo que atravessaria os 40 anos de deserto, sem pouso certo, cercado de inimigos e idólatras.
Era necessário manter as 12 tribos errantes sob uma legislação única e severa, daí que o decálogo tem um feitio mais social do que religioso, embora os três primeiros mandamentos sejam explícitos ao Deus único que diferenciava os judeus dos povos politeístas que dominavam a região.
Os judeus da época precisavam de um comando forte de uma personalidade como Moisés. Os dias que ele passou no alto do Sinai foram o bastante para, ao descer do monte, encontrar seu povo adorando o bezerro de ouro, num rito pagão comandado pelo próprio irmão de Moisés. Donde a ilação: sem uma âncora moral e social, fatalmente a sociedade será atraída pela adoração festiva dos bezerros de ouro que se sucedem ao longo da história.
No primeiro livro que Freud escreveu, antes de criar a psicanálise, é feito um estudo minucioso do "Moisés", de Michelangelo. Ele queria identificar o instante que inspirou o artista a esculpir sua estátua. Segundo Freud, ao descer do Sinai com as tábuas da lei, Moisés teve um momento de cólera ao ver seu povo adorando um ídolo.
Os líderes religiosos, tanto no judaísmo como no cristianismo, recorrem aos mesmos preceitos da lei mosaica que atravessou os séculos, muito antes de Elis Regina ter nascido.


Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: "Granta" terá edição brasileira
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.