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CARLOS HEITOR CONY
Elis Regina e a castidade
Antes de Elis, havia um espaço nebuloso, como nos primeiros séculos da galáxia
NÃO FAZ muito tempo, fiz parte de uma comissão julgadora de textos universitários
sobre história e escrevi uma crônica
a respeito.
Para 90% dos trabalhos apresentados, o mundo teria começado a
partir de Elis Regina. Antes dela,
havia um espaço nebuloso, uma
zona gasosa como nos primeiros
séculos da galáxia da qual a Terra
foi formada.
Getúlio Vargas, Napoleão, Jesus
Cristo, JK, Tiradentes, Carmen Miranda, Pedro Álvares Cabral, Hitler,
Leonardo Da Vinci e o barão do Rio
Branco viviam amontoados na mesma época e no mesmo espaço, mais
ou menos como as diversas espé-
cies de dinossauros nos começos
da formação geológica do nosso
planeta.
Não parece, mas, a julgar pela perplexidade de grande parte da mídia
provocada por alguns pronunciamentos do papa na sua recente visita, Bento 16 teria inventado a castidade ao pedir que os jovens aguardassem o casamento para iniciar a
vida sexual.
Nada mais anacrônico e contra o
processo histórico do que a exaltação de uma virtude exclusiva dos
monastérios medievais.
Num comentário feito na CBN, no
dia seguinte à declaração do papa, tive a audácia de lembrar que o preceito da castidade vem lá de trás, do
decálogo que Moisés, séculos antes
de Cristo e de Bento 16, trouxe do
monte Sinai, sendo o sexto dos dez
mandamentos que procuraram dar
uma ordem mais social do que religiosa não apenas ao povo hebreu
que fugia da escravidão no Egito
mas que passou ao judaísmo e foi
absorvido integralmente pelo cristianismo.
Recebi e-mails furibundos de ouvintes estarrecidos pelo fato de lembrar um mandamento que, junto
com os outros nove, tentaram formar a civilização ocidental. Não matarás, não roubarás, não levantarás
falso testemunho, honrarás pai e
mãe, não pecarás contra a castidade,
não desejarás a mulher do próximo
(por sinal, dois dos mandamentos
da legislação de Moisés referem-se
ao mesmo assunto).
O decálogo não foi modificado por
Cristo ao fundar a religião que leva
seu nome. Muitos séculos depois,
Lutero fez a reforma protestante,
que é considerada o começo da era
moderna no ocidente. Também não
mexeu nos dez mandamentos, e os
diversos ramos das igrejas nascidas
da Reforma fizeram os mesmos, nada acrescentando e nada eliminando das chamadas tábuas da lei.
Se um matemático afirmasse em
declaração pública que dois mais
dois são quatro, acredito que ninguém deveria ficar espantado. Newton e Einstein, cada qual em seu
tempo, copidescaram Euclides, mas
não chegaram a mexer no básico, no
dois mais dois são quatro.
Evidente que os mandamentos de
Moisés não têm força matemática,
não formam uma certeza absoluta,
pertencem ao domínio pantanoso
da moral e do social.
Mas são referências antigas que
atravessaram o tempo e, se não criaram uma sociedade ideal, sempre
serão lembradas em épocas confusas como a nossa.
Alguns historiadores e pensadores atribuem os mandamentos mosaicos à realidade do povo que atravessaria os 40 anos de deserto, sem
pouso certo, cercado de inimigos e
idólatras.
Era necessário manter as 12 tribos
errantes sob uma legislação única e
severa, daí que o decálogo tem um
feitio mais social do que religioso,
embora os três primeiros mandamentos sejam explícitos ao Deus
único que diferenciava os judeus
dos povos politeístas que dominavam a região.
Os judeus da época precisavam de
um comando forte de uma personalidade como Moisés. Os dias que ele
passou no alto do Sinai foram o bastante para, ao descer do monte, encontrar seu povo adorando o bezerro de ouro, num rito pagão comandado pelo próprio irmão de Moisés.
Donde a ilação: sem uma âncora
moral e social, fatalmente a sociedade será atraída pela adoração festiva
dos bezerros de ouro que se sucedem ao longo da história.
No primeiro livro que Freud escreveu, antes de criar a psicanálise, é
feito um estudo minucioso do "Moisés", de Michelangelo. Ele queria
identificar o instante que inspirou o
artista a esculpir sua estátua. Segundo Freud, ao descer do Sinai com as
tábuas da lei, Moisés teve um momento de cólera ao ver seu povo
adorando um ídolo.
Os líderes religiosos, tanto no judaísmo como no cristianismo, recorrem aos mesmos preceitos da
lei mosaica que atravessou os séculos, muito antes de Elis Regina ter
nascido.
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