São Paulo, domingo, 18 de maio de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FERREIRA GULLAR

A desigualdade dos iguais


"Os que lutaram devem ter preferência", disse alguém, e o argumento pareceu razoável

EM TEMPOS remotos, quando os deuses falavam pela boca dos loucos, o conceito de justiça se limitava à obediência às normas que regiam a sociedade.
Não se cogitava alterar as relações de propriedade, uma vez que, conforme a crença geral, quem era rei ou nobre o era por determinação divina, resultando daí que rebelar-se contra a desigualdade era rebelar-se contra os deuses. Não obstante, já então, de um jeito ou de outro, o senso de justiça era a base da vida comunitária. Donde se conclui que a noção do que é justo pode variar, mas, sem ela, a sociedade humana torna-se inviável.
"O homem é injusto e, não obstante, inventou a Justiça", dizia o filósofo Krinópolus, num texto célebre em que demonstrava como, mesmo nas comunidades mais antigas, já esse conceito estava presente. E citava o exemplo de uma cidade onde o assassinato impune de seu jovem rei pesava sobre a consciência de todos, como uma espécie de culpa coletiva.
Ele saíra sozinho em passeio pelas cercanias da cidade, como costumava fazer, e não voltou. Durante toda a noite, sua esposa esperara por ele inutilmente e, na manhã seguinte, chegou a notícia de que um camponês o encontrara morto numa estrada deserta. Quem o poderia ter assassinado, se ele era um rei cordato, justo e generoso? Não se sabia.
Depois de muito chorar, a rainha terminou por se apaixonar por um jovem forasteiro que viera servir no palácio e com quem se casou. O novo governante mostrou-se igualmente bom e generoso, para a alegria de todo o povo. Não obstante, nunca mais aquela cidade foi feliz. Pragas freqüentes dizimavam centenas de pessoas, levando o luto e o sofrimento às famílias. "É que a justiça não foi feita", advertiam os mais velhos, "o assassino de nosso jovem monarca continua impune".
Não vou me ocupar dos detalhes desta história, mas o certo é que aquela comunidade só voltou a ter paz depois que o crime foi punido. Pode até ser que o criminoso fosse outro, mas, para todos os efeitos, a justiça foi feita.
Foi necessário que muito tempo passasse até alguém se dar conta de que todas as pessoas são iguais e, por isso, para haver justiça, seria necessário que a riqueza da sociedade fosse dividida entre todos igualmente. Mas como conseguir isso? Os adeptos da igualdade acreditaram que aquela era uma verdade tão evidente que todos logo adeririam a ela -e começaram a pregá-la. Para surpresa deles, os ricos não apenas se negaram a dividir o que possuíam como passaram a perseguir os defensores da igualdade.
Diante disso, convenceram-se de que o único modo de alcançar seus objetivos era, em vez de tentar convencer os ricos a dividir sua riqueza, procurar convencer os pobres de que tinham direito a ela e deveriam tomá-la. "Os ricos são poucos, e os pobres são muitos, logo venceremos a disputa." Mas, para isso, observou alguém, terão que tomar o poder e mudar as leis.
Depois de muita luta, os ricos foram destituídos de suas funções de governo e seus bens passaram à propriedade comum da sociedade. "Agora, a riqueza é de todos", proclamaram os novos governantes, sem saber ainda como dividi-la de modo justo e equânime. Além disso, não apenas os ricos possuíam terras e bens; um número grande de pessoas também os possuía, ainda que em menor quantidade e às custas de seu trabalho. Seria justo tomar-lhes esses bens? A opinião dos novos dirigentes se dividiu, já que uma parte deles afirmava que se devia respeitar esse tipo de propriedade. Não, afirmavam outros, ninguém deve ter nenhuma propriedade, tudo será do Estado, que proverá as pessoas segundo sua necessidade.
Parecia justo, mas os bens existentes -terras, animais, arados, máquinas, casas, alimentos- não eram em quantidade suficiente para atender à necessidade de todos. Como escolher os que receberiam bens agora e os que teriam de recebê-los mais tarde? "Os que lutaram pela nova sociedade devem ter preferência", argumentou alguém, e esse argumento pareceu razoável, embora implicasse estabelecer um novo tipo de desigualdade, a desigualdade provisória.
No entanto, não se sabe se os desacreditados deuses, ou os demônios, conspiraram para que uma série de calamidades caísse sobre aquela gente bem-intencionada, agravando-lhe as condições de vida: inundações, estiagens, invasões -o que veio tornar cada dia mais difícil atender aos que nada haviam recebido na primeira partilha. O descontentamento foi se disseminando entre os desfavorecidos, e uma nova rebelião parecia ameaçar o regime.
O problema é que, se todos os homens são iguais, existem aqueles que são mais iguais.


Texto Anterior: Televisão / Crítica: Falta a Scorsese o frescor do seu início
Próximo Texto: Exposições: Mostra sobre Gilberto Freyre termina hoje
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.