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Walter Salles estréia aplaudido em Cannes
"Linha de Passe", terceira parceria com Daniela Thomas, teve primeira projeção na competição do festival ontem
Filme é sobre "gente que se salva", segundo diretor, que salientou condição bastarda da família retratada na obra como metáfora do Brasil
SILVANA ARANTES
ENVIADA ESPECIAL A CANNES
Começou sob chuva forte e terminou em aplausos e lágrimas a sessão do filme "Linha de
Passe", de Walter Salles e Daniela Thomas, em competição
pela Palma de Ouro no 61º Festival de Cannes, ontem à noite.
Aplaudidos por nove minutos, os quatro atores principais
do filme -todos estreantes em
cinema, exceto Vinicius Oliveira ("Central do Brasil")- choraram, ao lado dos diretores,
que os abraçaram, um a um.
A platéia aumentou a intensidade das palmas quando Salles cumprimentou o ator Kaique de Jesus Santos, 14, que vive Reginaldo, o irmão mais novo e único negro na família-tema. Reginaldo tem a obsessão
de descobrir quem é seu pai, a
respeito do qual sabe apenas a
profissão: motorista de ônibus.
Na história, os quatro filhos
da empregada doméstica Cleuza (Sandra Corveloni) têm pais
diferentes -todos ausentes. A
condição de orfandade paterna
no filme coincide com a "histórica" ausência da figura do pai
no Brasil, conforme disse Salles, em entrevista coletiva, na
manhã de ontem, em Cannes.
"O nome Brasil nos foi dado
pelos portugueses, e o ato seguinte à nomeação foi levar para Portugal todo o pau-brasil da
nossa costa. Fomos batizados
por um padrasto que nos abandonou em ato contínuo", disse.
Na personagem da matriarca, ele identifica um traço de
"mãe-coragem" e uma espécie
de "resistência ética que representa muito o Brasil contemporâneo". Cleuza tenta fazer com
que os filhos tenham a decência
como padrão de conduta.
O diretor observa que a violência surge no filme "interna à
família" e também "esbarrando
nos personagens" pelas bordas.
Embora a intenção de "Linha
de Passe", segundo Salles, fosse
abordar "personagens que não
optam pela violência", tipos
"raramente mostrados no cinema brasileiro", seria "impossível" contar uma história ambientada "nesse universo [da
exclusão social] sem que a violência o rodeasse".
Daniela Thomas, que é também co-roteirista (com George
Moura e a colaboração de Bráulio Mantovani), afirmou que
São Paulo "é um sexto personagem". "São Paulo é uma cidade
sem paisagem. No Rio, você
tem a paisagem e [com ela] um
certo sentido de redenção."
Em "Linha de Passe", os três
irmãos mais velhos de Reginaldo também lidam cotidianamente com sonhos e frustrações. Dario (Vinicius de Oliveira) sonha com uma carreira no
futebol. Tenta ultrapassar as
"peneiras" nas quais os clubes
selecionam novos talentos,
mas luta também contra o tempo. Está prestes a completar a
idade-limite de 18 anos.
Dênis (João Baldasserini) é
motoboy. Tem a dívida da moto
a saldar e sente a pressão da ex-namorada, com quem teve um
filho, para contribuir nas despesas com o bebê. Depois de
testemunhar a ação de colegas
que roubam motoristas, sente-se tentado a fazer o mesmo.
Dinho (José Geraldo Rodrigues) é o que trabalha como
frentista. Convertido à fé evangélica, auxilia nos trabalhos religiosos e administrativos da
igreja e testemunha a luta do
pastor para manter os fiéis (e
suas contribuições financeiras), frente ao surgimento de
novas agremiações religiosas.
"[O filme] É um pouco a imagem de um Brasil que tenta se
reinventar, mas sem romantismo. É impossível romantizar a
realidade social brasileira",
afirmou Salles.
Na hora da sessão de ontem,
um temporal obrigou os convidados a usar guarda-chuvas até
a porta do Grande Teatro Lumière. Ainda assim, muitos
molharam o traje de gala exigido para a ocasião. O aguaceiro
retirou um pouco do tom solene do tapete vermelho.
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