São Paulo, terça-feira, 18 de julho de 2000


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CINEMA
Roteirista recorda a face suave de Stanley Kubrick

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Stanley Kubrick (1928-1999) não pára de crescer desde que morreu, há um ano e meio, às vésperas de entregar "De Olhos Bem Fechados", recém-lançado em vídeo no Brasil.
Steven Spielberg dedica-se a concretizar o último projeto kubrickiano, "A.I." (sigla inglesa para Inteligência Artificial), uma versão cibernética de Pinóquio baseada num conto de Brian Aldiss. Os estúdios Warner preparam para o próximo ano o documentário oficial sobre o cineasta. A bibliografia sobre Kubrick aumenta mês a mês, e a última adição de maior relevância é o conciso "Kubrick", de Michael Herr (Grove Press, 98 págs, US$ 18,95).
O breve volume reúne dois textos publicados originalmente pela revista mensal "Vanity Fair". Herr revela no final do texto que a idéia original foi do próprio Kubrick, de quem era amigo havia duas décadas e para quem escreveu o roteiro de "Nascido para Matar" (1987). Meses antes de morrer, Kubrick convidara Herr para escrever um artigo "exclusivo" sobre "De Olhos Bem Fechados", mas o cineasta morreu antes. A reportagem de apresentação de seu último filme foi substituída por dois carinhosos ensaios memorialísticos.
O livro de Michael Herr é uma resposta direta ao de Frederic Raphael ("De Olhos Bem Abertos", Geração Editorial, 1999), o colaborador de Kubrick na roteirização de "De Olhos Bem Fechados".
Em seu posfácio, Herr alveja explicitamente Raphael, condenando-o pelo tom de infinita superioridade que assumiu frente ao cineasta: "Lemos sobre o Stanley tirano, o perfeccionista obsessivo, o frio Stanley, o Stanley secreto, o não-cooperativo, e um novo Stanley, o judeu que se odeia como tal", reclama.
Herr dedica seu livro fundamentalmente a recuperar a imagem de Kubrick e, ao fim, a defender "De Olhos Bem Fechados" de seus críticos.
Sobre Raphael, Herr teve a vantagem de ter desenvolvido uma relação não meramente profissional com o cineasta. Enquanto "De Olhos Bem Abertos" nos traz Kubrick sob a lente de um pontual colaborador, "Kubrick" explora a proximidade maior dos que transcenderam os contatos ditados pelos deveres do ofício. São narrativas algo complementares, francamente antagônicas, igualmente obrigatórias.
Vários achados sobre o Kubrick de carne e osso enriquecem o livro de Herr. Kubrick não trocou em 1968 os EUA pela Inglaterra num auto-exílio voluntário de um misantropo que odiava Hollywood e a civilização do entretenimento em que se tornara seu país natal. O diretor de "Doutor Fantástico", na verdade, encontrou nos subúrbios de Londres apenas o lugar mais à mão para estabelecer seu quartel-general, de onde pouco saía, mas onde seria muito mais gregário do que afirmam aqueles que não o conheceram.
"Kubrickland" desenvolveu-se ali como poderia ter se estabelecido perto de Nova York, numa praia da Jamaica ou no coração de Hong Kong. O importante era ter à mão um telefone sempre funcional, computadores de última geração, livros e periódicos. Não me surpreenderia se descobrissem que a invenção da Internet tem algum elo com as infindáveis pesquisas de Kubrick. "Ele tinha mais compartimentos na cabeça do que qualquer outra pessoa que conheci", lembra Herr.
Ao contrário da lenda, Kubrick jamais se desligou da cultura americana. Acompanhava com humor e curiosidade a ciranda de poderosos em Hollywood e amava seriados da TV como "Os Simpsons" e "Seinfeld". Considerava "O Poderoso Chefão" (1972), de Francis Ford Coppola, provavelmente o maior filme de todos os tempos e "por certo aquele com melhor elenco".
Kubrick jamais foi um judeu praticante, mas a cultura e a história judaicas sempre marcaram suas reflexões. Sua saudável auto-ironia frente ao judaísmo, como a de tantos intelectuais judeus de origem, foi maldosamente interpretada por Raphael e é agora devidamente resgatada por Herr.
Ele lembra ter recebido do amigo, pouco depois de conhecê-lo, um exemplar do clássico "The Destruction of the European Jews" (A Destruição dos Judeus Europeus), de Raul Hilberg, um presente no mínimo estranho caso Kubrick visse Hitler com alguma simpatia, como diz Raphael.
Herr nos convence de um Kubrick excêntrico, mas não insuportável, perfeccionista, mas respeitoso, solitário, mas não misantropo, sensível e generoso, mas a seu próprio jeito. Reafirmam-se não poucas qualidades do gigantesco cineasta, mas é o homem o objeto central de seu livro. Raras vezes esteve Kubrick de nós tão próximo -embora tão longe.


Livro: Kubrick
    Autor: Michael Herr Editora: Grove Press Quanto: US$ 18,95 (98 págs.)




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