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São Paulo, sexta-feira, 18 de julho de 2003

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Espectro da guilhotina


Em "A Inglesa e o Duque", Rohmer fabrica com cores novas a Paris da Revolução Francesa


DO "EL PAÍS"

Eric Rohmer, 83, recebeu um Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2001. O cineasta francês foi homenageado por sua carreira iniciada em 1962 e que acumula 22 filmes, a maioria deles atentos à evolução dos sentimentos contemporâneos. Sua última obra, "A Inglesa e o Duque", estréia hoje em São Paulo, um filme político, histórico e tecnicamente inovador- três características pouco frequentes em seu cinema.
"Era um projeto que eu tinha há mais de 10 anos, mas naquela época a conversão de imagens gravadas em vídeo para película não era satisfatória. Precisei esperar que a técnica progredisse", diz Rohmer.
Em "A Marquesa d'O" (1976) ou "Perceval le Gallois" (1978), seus outros filmes de época, o roteiro foi baseado em um texto alheio. "Durante umas férias, li as memórias de Grace Elliott, uma inglesa que foi amante do duque de Orleans, o irmão de Luís 16. No artigo, dizia-se que a mansão em que Grace vivera, na rua Miromesnil, em Paris, ainda existia. Quis visitar o lugar e ler as memórias dessa mulher que, em meio à tormenta revolucionária, continuou vivendo discretamente sem sair de casa. O que propeliu o filme foi o desejo de mostrar Paris e de fazer isso realmente, sem precisar recorrer a uma província. Essa Paris da revolução não mais existe. Seria preciso fabricá-la, e por isso contactei o pintor Jean-Baptiste Marot para reconstruir a Paris autêntica. Mostro a Revolução Francesa tal como a viveram seus protagonistas".
O desejo de submergir na Paris de 1791, de dar movimento às telas do museu da cidade, se completa com outro motivo. "As memórias de Grace Elliott têm uma construção que parece feita para o cinema". Rohmer trata do período conhecido como a fase do terror, quando a guilhotina era o símbolo da vontade de romper com o passado. "Tomei como modelo dois filmes, "As Duas Órfãs" e "Conto de Duas Cidades", na visão de Jack Conway".
"Eles não têm nada a ver com "A Marselhesa", de Jean Renoir, que apresenta o lado bom da revolução". Outro título a que Rohmer se refere é "Napoleão", de Abel Gance. Suas decisões formais são as de esteta cinéfilo, alguém com ampla cultura cinematográfica e, sobretudo, literária. "Tentei manter o idioma da época. O relato de Grace Elliott e as memórias do duque de Orleans me ofereceram tudo o que eu precisava. Se houvesse utilizado meu estilo para escrever uma história de dois séculos atrás, o resultado teria sido um pastiche."
O povo de Rohmer é inculto, cruel e vingativo. "Não faço política com o cinema. Como cidadão, tenho minhas opiniões, mas como cineasta me esqueço delas. Em "A Inglesa e o Duque", trato de uma fase da revolução em que já não restam idéias, só violência."
Ele fala com entusiasmo de sua heroína, mas admite saber pouco sobre ela. "As memórias de Elliott não explicam se ela foi ou não espiã. Suspeito que se tratasse de uma agente dupla. Não revelam, além disso, quem era seu novo amante, ainda que se trate de um general a serviço da revolução. É provável que tenha sido isso que a salvou de morrer guilhotinada."

Tradução Paulo Migliacci


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