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CARLOS HEITOR CONY
O presidente que todos desejamos
Getúlio Vargas e Juscelino
Kubitschek, os dois maiores
presidentes da República que tivemos, não falavam inglês. Getúlio arranhava o portunhol, devido à sua condição de homem
fronteiriço, onde o próprio português é mesclado com palavras e
sintaxe espanholas. Juscelino era
fluente em francês; recém-formado em medicina fizera um curso e
um estágio na Clínica de Urologia do professor Chevassu, no
Hospital Cochin.
Nos anos em que o conheci, e
com ele trabalhei na edição de
suas memórias, JK era acompanhado por um simpático professor de inglês que mantinha conversação com ele, tentando vencer uma barreira que o constrangia, mas não lhe fazia falta.
Castelo Branco era outro que
falava fluentemente o francês, fizera cursos com militares franceses e durante a guerra funcionara
muitas vezes como intérprete de
seus colegas de estado-maior
quando havia necessidade de se
apelar para a língua de Racine.
Era ignaro em outros idiomas.
Costa e Silva era monoglota, como quase todos os demais presidentes, e sobre ele há uma história que pode ser piada e pode ser
verdade. Numa visita à Inglaterra, estando sozinho no quarto do
hotel, bateram à porta, ele correu
ao pequenino dicionário de bolso
para saber como se dizia "entre"
em inglês. E gritou lá de dentro:
"Between"!
Collor também falava francês e
arranhava o inglês, mas deu o vexame do "duela a quién duela"
num momento difícil para ele,
quando seu mandato começava a
desabar.
Figueiredo sabia de cor o hino
da Argentina, em idioma local,
pelos anos em que acompanhou o
pai no exílio em Buenos Aires.
Mas já me garantiram que, em
espanhol, como eu, ele só sabia
três palavras: micrófono, teléfono
e sin embargo.
Por essas e outras, não me impressiono com o fato de Lula não
falar inglês. A ausência da escolaridade superior em absoluto lhe
faz falta. É suprida com eficiência
pela inteligência rápida, a assombrosa rapidez com que aprende e
apreende as coisas mais complicadas. É o homem comum brasileiro, dotado daquela vitalidade
mental que nos distingue de povos mais cultos e escolarizados.
Não é por aí que sua gestão está
começando a dar furos. Acredito
que nada de irreparável, pelo menos até agora, mas são muitos os
que, como eu, começam a perguntar não o que Lula fará com o
Brasil, mas o que o Brasil fará
com Lula. Para governar um país
com as complexidades que se formaram ao longo da história, para
administrar uma sociedade complicada como a nossa, com os desníveis de renda e de cultura que
apresentamos, a simples intuição
e a agilidade política não bastam.
Napoleão era um simples caporal, um estrangeiro ainda por cima. Mal dominava o francês naquela época, mas lia todas as noites um trecho de "O Príncipe", de
Maquiavel. Para quê? Por quê?
Bem, Maquiavel escreveu em italiano, a língua materna de Napoleão. Mas um tenente de artilharia precisaria ler Maquiavel para
saber onde botar um canhão que
defendesse uma posição no campo de batalha?
Não estou sugerindo "O Príncipe" como leitura indispensável a
um chefe de governo, embora, na
prática, seja comum aos candidatos a estadista dar uma espiada
no maquiavélico autor. O fato é
que Lula, candidato presidencial
três vezes e três vezes derrotado
não pelas suas deficiências mas
pelas suas qualidades que assustavam as elites nacionais e o capital internacional, finalmente chegou lá com o mesmo conjunto de
reivindicações que o marcou em
sua vida de líder popular. Ninguém como ele sabe onde estão os
caroços, os nós que estrangulam o
fluxo de nossa vida pública. Sua
incontestável liderança da militância não o habilitou a um estágio acima, quando é necessária a
ação, e não a reivindicação.
Felizmente para nós, ele também é servido pelo bom senso, sabe recuar, procura acertar, tem a
humildade pessoal de aprender.
Mas é pouco, ainda. Pela natureza de seu carisma, e não por vontade própria, ele começa a se vestir com a túnica esbranquiçada
dos messias, embora faça louvável esforço para se meter nos ternos que os marqueteiros do dia
lhe aconselham.
Compreende-se que foram muitos os que temeram sua vitória,
mas por motivos equivocados.
Não era doutor, não falava inglês,
era frágil nas concordâncias verbais, gostava demais de futebol e
de tomar cachacinhas com os
amigos. Que Deus o preserve e ele
continue como era em sua feição
pessoal, de homem comum e integrado na vida brasileira no que
ela tem de mais simples e simpática.
Mas é também natural o temor
de que tantas e tão encantadoras
qualidades não bastem quando
de sua liderança dependem os desafios que requerem não uma instrução superior, mas uma visão
superior dos problemas, das possibilidades, do tempo e do modo de
gerir as necessidades de milhões
de brasileiros fatigados de fórmulas vindas de fora e de interesses
vindos de dentro.
Resumindo: Lula atingiu aquele estágio em que não precisa provar nada, apenas que está realmente preparado para ser o presidente que ele prometeu ser e que
nós também queremos que ele seja.
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