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São Paulo, sexta-feira, 18 de julho de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

O presidente que todos desejamos

Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, os dois maiores presidentes da República que tivemos, não falavam inglês. Getúlio arranhava o portunhol, devido à sua condição de homem fronteiriço, onde o próprio português é mesclado com palavras e sintaxe espanholas. Juscelino era fluente em francês; recém-formado em medicina fizera um curso e um estágio na Clínica de Urologia do professor Chevassu, no Hospital Cochin.
Nos anos em que o conheci, e com ele trabalhei na edição de suas memórias, JK era acompanhado por um simpático professor de inglês que mantinha conversação com ele, tentando vencer uma barreira que o constrangia, mas não lhe fazia falta.
Castelo Branco era outro que falava fluentemente o francês, fizera cursos com militares franceses e durante a guerra funcionara muitas vezes como intérprete de seus colegas de estado-maior quando havia necessidade de se apelar para a língua de Racine. Era ignaro em outros idiomas.
Costa e Silva era monoglota, como quase todos os demais presidentes, e sobre ele há uma história que pode ser piada e pode ser verdade. Numa visita à Inglaterra, estando sozinho no quarto do hotel, bateram à porta, ele correu ao pequenino dicionário de bolso para saber como se dizia "entre" em inglês. E gritou lá de dentro: "Between"!
Collor também falava francês e arranhava o inglês, mas deu o vexame do "duela a quién duela" num momento difícil para ele, quando seu mandato começava a desabar.
Figueiredo sabia de cor o hino da Argentina, em idioma local, pelos anos em que acompanhou o pai no exílio em Buenos Aires. Mas já me garantiram que, em espanhol, como eu, ele só sabia três palavras: micrófono, teléfono e sin embargo.
Por essas e outras, não me impressiono com o fato de Lula não falar inglês. A ausência da escolaridade superior em absoluto lhe faz falta. É suprida com eficiência pela inteligência rápida, a assombrosa rapidez com que aprende e apreende as coisas mais complicadas. É o homem comum brasileiro, dotado daquela vitalidade mental que nos distingue de povos mais cultos e escolarizados.
Não é por aí que sua gestão está começando a dar furos. Acredito que nada de irreparável, pelo menos até agora, mas são muitos os que, como eu, começam a perguntar não o que Lula fará com o Brasil, mas o que o Brasil fará com Lula. Para governar um país com as complexidades que se formaram ao longo da história, para administrar uma sociedade complicada como a nossa, com os desníveis de renda e de cultura que apresentamos, a simples intuição e a agilidade política não bastam.
Napoleão era um simples caporal, um estrangeiro ainda por cima. Mal dominava o francês naquela época, mas lia todas as noites um trecho de "O Príncipe", de Maquiavel. Para quê? Por quê? Bem, Maquiavel escreveu em italiano, a língua materna de Napoleão. Mas um tenente de artilharia precisaria ler Maquiavel para saber onde botar um canhão que defendesse uma posição no campo de batalha?
Não estou sugerindo "O Príncipe" como leitura indispensável a um chefe de governo, embora, na prática, seja comum aos candidatos a estadista dar uma espiada no maquiavélico autor. O fato é que Lula, candidato presidencial três vezes e três vezes derrotado não pelas suas deficiências mas pelas suas qualidades que assustavam as elites nacionais e o capital internacional, finalmente chegou lá com o mesmo conjunto de reivindicações que o marcou em sua vida de líder popular. Ninguém como ele sabe onde estão os caroços, os nós que estrangulam o fluxo de nossa vida pública. Sua incontestável liderança da militância não o habilitou a um estágio acima, quando é necessária a ação, e não a reivindicação.
Felizmente para nós, ele também é servido pelo bom senso, sabe recuar, procura acertar, tem a humildade pessoal de aprender. Mas é pouco, ainda. Pela natureza de seu carisma, e não por vontade própria, ele começa a se vestir com a túnica esbranquiçada dos messias, embora faça louvável esforço para se meter nos ternos que os marqueteiros do dia lhe aconselham.
Compreende-se que foram muitos os que temeram sua vitória, mas por motivos equivocados. Não era doutor, não falava inglês, era frágil nas concordâncias verbais, gostava demais de futebol e de tomar cachacinhas com os amigos. Que Deus o preserve e ele continue como era em sua feição pessoal, de homem comum e integrado na vida brasileira no que ela tem de mais simples e simpática.
Mas é também natural o temor de que tantas e tão encantadoras qualidades não bastem quando de sua liderança dependem os desafios que requerem não uma instrução superior, mas uma visão superior dos problemas, das possibilidades, do tempo e do modo de gerir as necessidades de milhões de brasileiros fatigados de fórmulas vindas de fora e de interesses vindos de dentro.
Resumindo: Lula atingiu aquele estágio em que não precisa provar nada, apenas que está realmente preparado para ser o presidente que ele prometeu ser e que nós também queremos que ele seja.


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