São Paulo, sábado, 18 de julho de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Caio entre amigos

Nova biografia reúne correspondência do escritor Caio Fernando Abreu com depoimentos de seus amigos e traça um painel dos anos 80, da explosão do hedonismo pós-ditadura ao surto da Aids

Divulgação
O escritor Caio Fernando Abreu posa para retrato

SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL

Caio Fernando Abreu era demolidor, impassível, sarcástico, irônico, ciumento, triste, alto, magro, longo, intenso, um bon vivant, um príncipe, um romântico, um "free spirit", blasé, amargo, sofrido, urbano, devasso, satírico, macrobiótico, suicida, atormentado, um "lone ranger", o rei da dor de cotovelo, sombrio, grave, lânguido, andrógino, pansexual, solar.
E a lista segue ao som de Cazuza, Rita Lee, Billie Holiday. São as palavras mais frequentes nas lembranças de amigos do autor de "Morangos Mofados". Morto de Aids há 13 anos, Caio escorreu hoje das margens para o mainstream e virou uma das vozes literárias mais fortes do Brasil pós-ditadura e pré-HIV.
Numa espécie de surto, mais de 40 teses sobre sua obra saem de universidades do país. Editoras também lançam obras ligadas a ele -primeiro seu "Teatro Completo", que saiu pela Agir, agora uma biografia, "Para Sempre Teu, Caio F.", da Record, que deve relançar neste ano sua obra poética.
"Fico impressionada com esses jovens que amam o Caio pelo que ele escreveu, que nem conheceram ele", diz Paula Dip, autora da mais nova biografia do autor. "Talvez porque ele era um romântico, morreu de Aids como os poetas morriam de tuberculose no fin-de-siècle."
Ela conheceu o escritor na editora Abril, onde Caio era redator da extinta revista "Pop". Na época, ele escrevia os contos de "Morangos Mofados", seu livro mais célebre, numa Olivetti Lettera 22, a mesma máquina em que bateu suas cartas aos amigos mais próximos.
Juntas em "Para Sempre Teu, Caio F.", com depoimentos dos destinatários, ajudam a traçar um painel dos anos 80.
Era a pista de dança do Madame Satã, as noites do Studio 54 e Fire Island, em Nova York, os drinques no Ritz, o sexo fácil. Tudo interrompido pela guilhotina da Aids, que Caio chamou de voragem, "um labirinto vivo, arrastando pensamentos e ações em círculos velozes, concêntricos, elípticos".

Recaídas
Da mesma forma que as vozes se misturam neste novo livro. "Dividimos a mesma casa, a mesma mesa, a mesma cama", lembra Celso Curi, jornalista que trabalhou com Caio. "Tudo sempre com muito suor e também com alguma dor."
Eco real da prosa do autor. "Deitei de costas. Fechei os olhos. Ardiam, como se tivesse acordado de manhã cedo. Então um corpo pesado caiu sobre o meu", escreveu a certa altura do conto "Sargento Garcia".
Mas Caio teve outros lados. "Não era um homossexual com "recaídas'", afirma seu editor Pedro Paulo de Sena Madureira. "Ele se apaixonava pelas pessoas: se fosse mulher, mulher, se fosse homem, homem."
Mas eram sempre paixões telegráficas -a mesma brevidade talvez que condenou quase toda sua prosa ao espaço sintético dos contos. "Ele adorava dançar, adorava beber, mas queria sempre mais, alguma coisa que não estava lá", lembra Paula.

Cerejas, jamais azeitonas
Em pele de mulher, Caio resume a questão. "Sou uma loura coquete que adora coquetéis, onde costumo degustar dulcíssimos martinis com cerejas, jamais com azeitonas, detesto o amargo", confessa um alter ego seu no conto "Fotografias".
E ele rodou o mundo fugindo desse amargo. "Caio dizia que o Rio era uma favela, Paris era insuportável, Londres era uma chatice", lembra Paula. Mas Caio, que era gaúcho e confessava uma "vontade filha da puta de sair do país", acabou pertencendo a São Paulo, cidade onde viveu por mais de 20 anos.
Seus personagens se prendem nos néons, na chuva e nos congestionamentos da cidade. "Faz pouco, eu estava escrencado no meio de um diálogo entre dois personagens. Eles e eu, bloqueados numa noite de sábado, no meio da chuva, no interior de um carro", escreveu.
Foi num sábado que Caio telefonou para amigos para dizer que tinha Aids. Numa série de crônicas, disse primeiro que sofria de "uma coisa estranha" e terminou falando em HIV, "esse vírus de science fiction".
Num lampejo de otimismo, chegou a dizer que o que importa é a vida. "Precisamos suportar. E beijá-la na boca. A vida grita, a luta continua." Ele morreu dois anos depois, cuidando de rosas que plantou.


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.