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Caio entre amigos
Nova biografia reúne correspondência do escritor Caio Fernando Abreu com depoimentos de seus amigos e traça um painel dos anos 80, da explosão do hedonismo pós-ditadura ao surto da Aids
Divulgação
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O escritor Caio Fernando Abreu posa para retrato
SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL
Caio Fernando Abreu era demolidor, impassível, sarcástico,
irônico, ciumento, triste, alto,
magro, longo, intenso, um bon
vivant, um príncipe, um romântico, um "free spirit", blasé,
amargo, sofrido, urbano, devasso, satírico, macrobiótico, suicida, atormentado, um "lone
ranger", o rei da dor de cotovelo, sombrio, grave, lânguido,
andrógino, pansexual, solar.
E a lista segue ao som de Cazuza, Rita Lee, Billie Holiday.
São as palavras mais frequentes
nas lembranças de amigos do
autor de "Morangos Mofados".
Morto de Aids há 13 anos, Caio
escorreu hoje das margens para
o mainstream e virou uma das
vozes literárias mais fortes do
Brasil pós-ditadura e pré-HIV.
Numa espécie de surto, mais
de 40 teses sobre sua obra saem
de universidades do país. Editoras também lançam obras ligadas a ele -primeiro seu
"Teatro Completo", que saiu
pela Agir, agora uma biografia,
"Para Sempre Teu, Caio F.", da
Record, que deve relançar neste ano sua obra poética.
"Fico impressionada com esses jovens que amam o Caio pelo que ele escreveu, que nem
conheceram ele", diz Paula Dip,
autora da mais nova biografia
do autor. "Talvez porque ele era
um romântico, morreu de Aids
como os poetas morriam de tuberculose no fin-de-siècle."
Ela conheceu o escritor na
editora Abril, onde Caio era redator da extinta revista "Pop".
Na época, ele escrevia os contos
de "Morangos Mofados", seu livro mais célebre, numa Olivetti
Lettera 22, a mesma máquina
em que bateu suas cartas aos
amigos mais próximos.
Juntas em "Para Sempre
Teu, Caio F.", com depoimentos dos destinatários, ajudam a
traçar um painel dos anos 80.
Era a pista de dança do Madame Satã, as noites do Studio
54 e Fire Island, em Nova York,
os drinques no Ritz, o sexo fácil.
Tudo interrompido pela guilhotina da Aids, que Caio chamou de voragem, "um labirinto
vivo, arrastando pensamentos
e ações em círculos velozes,
concêntricos, elípticos".
Recaídas
Da mesma forma que as vozes se misturam neste novo livro. "Dividimos a mesma casa,
a mesma mesa, a mesma cama", lembra Celso Curi, jornalista que trabalhou com Caio.
"Tudo sempre com muito suor
e também com alguma dor."
Eco real da prosa do autor.
"Deitei de costas. Fechei os
olhos. Ardiam, como se tivesse
acordado de manhã cedo. Então um corpo pesado caiu sobre
o meu", escreveu a certa altura
do conto "Sargento Garcia".
Mas Caio teve outros lados.
"Não era um homossexual com
"recaídas'", afirma seu editor
Pedro Paulo de Sena Madureira. "Ele se apaixonava pelas
pessoas: se fosse mulher, mulher, se fosse homem, homem."
Mas eram sempre paixões telegráficas -a mesma brevidade
talvez que condenou quase toda sua prosa ao espaço sintético
dos contos. "Ele adorava dançar, adorava beber, mas queria
sempre mais, alguma coisa que
não estava lá", lembra Paula.
Cerejas, jamais azeitonas
Em pele de mulher, Caio resume a questão. "Sou uma loura coquete que adora coquetéis,
onde costumo degustar dulcíssimos martinis com cerejas, jamais com azeitonas, detesto o
amargo", confessa um alter ego
seu no conto "Fotografias".
E ele rodou o mundo fugindo
desse amargo. "Caio dizia que o
Rio era uma favela, Paris era insuportável, Londres era uma
chatice", lembra Paula. Mas
Caio, que era gaúcho e confessava uma "vontade filha da puta
de sair do país", acabou pertencendo a São Paulo, cidade onde
viveu por mais de 20 anos.
Seus personagens se prendem nos néons, na chuva e nos
congestionamentos da cidade.
"Faz pouco, eu estava escrencado no meio de um diálogo entre
dois personagens. Eles e eu,
bloqueados numa noite de sábado, no meio da chuva, no interior de um carro", escreveu.
Foi num sábado que Caio telefonou para amigos para dizer
que tinha Aids. Numa série de
crônicas, disse primeiro que sofria de "uma coisa estranha" e
terminou falando em HIV, "esse vírus de science fiction".
Num lampejo de otimismo,
chegou a dizer que o que importa é a vida. "Precisamos suportar. E beijá-la na boca. A vida grita, a luta continua." Ele
morreu dois anos depois, cuidando de rosas que plantou.
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