São Paulo, sábado, 18 de julho de 2009

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Análise

Geração de Caio teve energia beat e traço hippie

Autor aproximou experiência e arte e ajudou a legitimar o conto como gênero

LUÍS AUGUSTO FISCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando Caio Fernando Abreu estourou em vendas, há 27 anos -uma exata geração atrás-, seus "Morangos Mofados" tinham a companhia de todo um plantel de novos autores, de coração hippie e energia beat, que queriam superar as distâncias entre experiência e arte e insuflaram na literatura brasileira uma proximidade com o cotidiano como fazia tempo que a juventude não conhecia. Ou nunca tinha acontecido? Caio, Leminski, Reinaldo Moraes e outros, cada qual em seu metiê, ensinaram a escrita literária a falar como falava uma canção de Caetano Veloso ou, deixa eu ver, Sérgio Sampaio, talvez. Mas Caio, que não estava começando ali (na verdade, em 1982 ele já tinha quatro livros publicados e centenas de laudas para a imprensa), tinha algo especial, no conjunto: eram dele os lances ao mesmo tempo mais ousados moralmente e mais sólidos literariamente, a serviço do registro do comportamento de quem nascera depois da Segunda Guerra e tinha o rock'n'roll e a canção brasileira como trilha sonora regular e íntima. Na literatura, ninguém tinha encontrado este ponto sintético antes dele, nem mesmo os de sua geração cronológica que estavam fazendo do conto um gênero finalmente respeitável. Rubem Fonseca frequenta outra praia, e assim Scliar, Faraco, Loyola Brandão, Sérgio Sant'Anna. Caio apostou tudo no ritmo da frase, que em sua mão era nervosa ou lírica conforme a conveniência, comandando suas incursões em palavra, gesto e mente de quem vivia a cidade grande e sem praia como pressuposto, não como ponto de chegada.

Literatura como vida
Caio praticou a literatura como um hippie: não se tratava de arte, muito menos de pose, mas de vida, uma coisa sempre urgente, que ele não concedia adiar. Traçou todas, meio como a Chiquita Bacana da marchinha, sem perder o tom: escreveu para jornais e revistas (reportagens, comentários, resenhas, entrevistas e muitas, muitas crônicas), redigiu poemas, compôs romances, inventou peças de teatro e roteiros, encontrou-se superiormente no conto e enviou centenas, milhares de cartas. O leitor pode fazer o teste: pegue qualquer página dele e confira pra ver se ele estava brincando. Não estava, era sempre a sério, mesmo quando extravasava um característico humor, que se encontra mais nas cartas do que em qualquer outra modalidade de texto. A sério: era pra valer, era pra dizer tudo, custasse o que custasse. Não por acaso, Caio expôs na arena pública sua condição de doente de Aids, quando a doença era ainda considerada um mistério e um tabu. O que mais chama a atenção é que a força de Caio, quer dizer, de sua literatura (hoje essa mistura ganha o elegante nome de autoficção, como Auster ou, sei lá, Mirisola), não vem do apelo sensacionalista que alguns quererão ver em sua obra, mas procede do exame minucioso a que submete as percepções e sensações íntimas de gente como o leitor e eu, pertencentes à civilização dos Beatles. Enquanto vibrarem as forças do fabuloso quarteto, aliás, aposto que Caio continuará eloquente.


LUÍS AUGUSTO FISCHER , professor de literatura na UFRGS, é autor de "Literatura Brasileira - Modos De Usar" (L&PM), entre outros.


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