São Paulo, sexta-feira, 18 de agosto de 2000


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CRÍTICA
Filme entroniza desejo feminino no sertão machista

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

A boa recepção de "Eu Tu Eles" em Cannes, a perspectiva de ser indicado para o Oscar etc. criaram a expectativa de que este será o grande sucesso brasileiro do ano.
A sorte e o marketing adequado projetaram-no além dos limites usuais (exemplo: uma de suas canções tornou-se sucesso no rádio). Tudo isso torna "Eu Tu Eles" um evento e, dada sua complexidade, mais vale tentar destrinchá-lo em tópicos.
1) De "Gêmeas", seu filme de estréia, para "Eu Tu Eles", a evolução de Andrucha Waddington é visível. Ao trocar o universo diabólico de Nelson Rodrigues por uma trama de costumes, simplifica os elementos com que trabalha -e ganha muito com isso.
2) A história tem empatia imediata com o público -sobretudo o feminino. A trama gira em torno de uma bóia-fria pobre que realiza a proeza de ter três maridos convivendo simultaneamente sob o mesmo teto. O reconhecimento e mesmo a entronização do desejo feminino é, do ponto de vista do roteiro, o grande achado.
3) O roteiro tem o bom senso de tratar com respeito e pudor a situação, evitando a armadilhas do achincalhe e da comédia à italiana (histórias de corno etc.). O que propõem Darlene (Regina Casé) e seus consortes é uma ordem familiar insólita, mas à qual sempre será preciso reagir com um "por que não?".
4) Na direção de atores, Waddington confirma as promessas de "Gêmeas". Aqui, tratava-se de dirigir três atores (Casé, Lima Duarte, Stênio Garcia) que costumam colocar seus personagens em surdina e relevar suas próprias personalidades. Aqui, sentimos os personagens e raramente o espectador percebe a presença de atores.
5) De todas as falsas questões que pode suscitar "Eu Tu Eles", a mais insidiosa diz respeito à representação do Nordeste. Seria justo condená-lo por não apresentar um "Nordeste verdadeiro", por evitar qualquer ênfase no miserabilismo? Certamente, não. Este não é um filme sobre o Nordeste. A história poderia se passar ali, no Pantanal, no Jardim Ângela ou na Patagônia.
Mas o sertão nordestino não é também um lugar aleatório. Nós o associamos facilmente a um certo primitivismo, que torna a situação mais paradoxal: naquilo que imaginamos como um paraíso machista e pouco cultivado, a façanha da protagonista, ao impor o desejo feminino sobre o masculino, tem algo de épico.
6) O que se pode questionar no Nordeste proposto não é sua eventual distância de um filme como "Vidas Secas", por exemplo, e sim, o pesado investimento em imagens tipo cartão-postal: pôr-do-sol, contraluz, a locação principal de beleza irretocável.
Em poucas palavras, a representação proposta sofre de retórica e de certa cafonice, que só servem para atravancar a narrativa. Apenas a um olhar incauto são demonstrações de "competência".
7) O desenvolvimento da trama não existe sem problemas. O diretor parece nutrir uma profunda antipatia pelo personagem de Lima Duarte: feio, autoritário, preguiçoso, impotente. Isso torna fria a parte dedicada ao primeiro casamento -não por acaso a mais estetizante delas.
O filme cresce muito quando aborda o segundo marido (Garcia), quando não só se percebe um investimento afetivo maior (da personagem feminina, mas também do diretor), como um belo trabalho no relacionamento entre os dois homens.
A entrada em cena do terceiro marido (Luiz Carlos Vasconcelos) é um tanto problemática, já que o diretor custa a definir uma atitude forte dos dois primeiros em relação ao intruso.
8) Se as virtudes deste filme são mais teatrais (atores) e literárias (roteiro, diálogos) do que cinematográficas, isso não se deve a uma deficiência, mas a uma escolha: "Eu Tu Eles" pende mais para o lado da indústria cultural do que para o do cinema.
Falta-lhe o horizonte da angústia, "o único do cinema", segundo Rossellini. Essa ausência será provavelmente uma mão na roda para que "Eu Tu Eles" se torne um sucesso. Não se pode ter tudo.


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