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CRÍTICA
Filme entroniza desejo feminino no sertão machista
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA
A boa recepção de "Eu Tu
Eles" em Cannes, a perspectiva de ser indicado para o Oscar
etc. criaram a expectativa de que
este será o grande sucesso brasileiro do ano.
A sorte e o marketing adequado
projetaram-no além dos limites
usuais (exemplo: uma de suas
canções tornou-se sucesso no rádio). Tudo isso torna "Eu Tu Eles"
um evento e, dada sua complexidade, mais vale tentar destrinchá-lo em tópicos.
1) De "Gêmeas", seu filme de estréia, para "Eu Tu Eles", a evolução de Andrucha Waddington é
visível. Ao trocar o universo diabólico de Nelson Rodrigues por
uma trama de costumes, simplifica os elementos com que trabalha
-e ganha muito com isso.
2) A história tem empatia imediata com o público -sobretudo
o feminino. A trama gira em torno de uma bóia-fria pobre que
realiza a proeza de ter três maridos convivendo simultaneamente
sob o mesmo teto. O reconhecimento e mesmo a entronização
do desejo feminino é, do ponto de
vista do roteiro, o grande achado.
3) O roteiro tem o bom senso de
tratar com respeito e pudor a situação, evitando a armadilhas do
achincalhe e da comédia à italiana
(histórias de corno etc.). O que
propõem Darlene (Regina Casé) e
seus consortes é uma ordem familiar insólita, mas à qual sempre
será preciso reagir com um "por
que não?".
4) Na direção de atores, Waddington confirma as promessas
de "Gêmeas". Aqui, tratava-se de
dirigir três atores (Casé, Lima
Duarte, Stênio Garcia) que costumam colocar seus personagens
em surdina e relevar suas próprias
personalidades. Aqui, sentimos
os personagens e raramente o espectador percebe a presença de
atores.
5) De todas as falsas questões
que pode suscitar "Eu Tu Eles", a
mais insidiosa diz respeito à representação do Nordeste. Seria
justo condená-lo por não apresentar um "Nordeste verdadeiro",
por evitar qualquer ênfase no miserabilismo? Certamente, não. Este não é um filme sobre o Nordeste. A história poderia se passar ali,
no Pantanal, no Jardim Ângela ou
na Patagônia.
Mas o sertão nordestino não é
também um lugar aleatório. Nós
o associamos facilmente a um
certo primitivismo, que torna a situação mais paradoxal: naquilo
que imaginamos como um paraíso machista e pouco cultivado, a
façanha da protagonista, ao impor o desejo feminino sobre o
masculino, tem algo de épico.
6) O que se pode questionar no
Nordeste proposto não é sua
eventual distância de um filme como "Vidas Secas", por exemplo, e
sim, o pesado investimento em
imagens tipo cartão-postal: pôr-do-sol, contraluz, a locação principal de beleza irretocável.
Em poucas palavras, a representação proposta sofre de retórica e
de certa cafonice, que só servem
para atravancar a narrativa. Apenas a um olhar incauto são demonstrações de "competência".
7) O desenvolvimento da trama
não existe sem problemas. O diretor parece nutrir uma profunda
antipatia pelo personagem de Lima Duarte: feio, autoritário, preguiçoso, impotente. Isso torna
fria a parte dedicada ao primeiro
casamento -não por acaso a
mais estetizante delas.
O filme cresce muito quando
aborda o segundo marido (Garcia), quando não só se percebe
um investimento afetivo maior
(da personagem feminina, mas
também do diretor), como um
belo trabalho no relacionamento
entre os dois homens.
A entrada em cena do terceiro
marido (Luiz Carlos Vasconcelos) é um tanto problemática, já
que o diretor custa a definir uma
atitude forte dos dois primeiros
em relação ao intruso.
8) Se as virtudes deste filme são
mais teatrais (atores) e literárias
(roteiro, diálogos) do que cinematográficas, isso não se deve a
uma deficiência, mas a uma escolha: "Eu Tu Eles" pende mais para
o lado da indústria cultural do que
para o do cinema.
Falta-lhe o horizonte da angústia, "o único do cinema", segundo
Rossellini. Essa ausência será provavelmente uma mão na roda para que "Eu Tu Eles" se torne um
sucesso. Não se pode ter tudo.
Avaliação:
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