São Paulo, quarta-feira, 18 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

A culpa do hambúrguer gigante

A idéia é meio tosca. Para mostrar que o fast food é pouco saudável, o diretor Morgan Spurlock passou um mês comendo só no McDonald's. Café da manhã, almoço e jantar. O resultado está em "Super Size Me", documentário que estréia nesta sexta-feira em São Paulo.
Spurlock engordou 11 quilos, seu colesterol foi às alturas, e o estado de seu fígado alarmou os médicos que acompanharam a experiência. Além disso, o rapaz se sentiu deprimido, exausto, irritadiço e viciado. Viveu semanas de necessidade e nojo, de insatisfação e empanturramento.
Entretanto ele não perde o bom humor diante das câmeras. Brinca com a atendente obesa, que lhe oferece doses gigantes do veneno. Faz palhaçada diante da nutricionista em pânico. Confraterniza com um grupo de gorduchas gargalhantes -que ignora pontos básicos da cultura americana, mas sabe de cor os ingredientes do Big Mac. Exulta diante dos lapsos verbais de um lobbista da indústria de alimentos.
Perto desse filme, os de Michael Moore são de uma sutileza machadiana. Spurlock viaja por todo o país, deliciando-se com a desinformação de seus compatriotas do mesmo modo que se lambuza de marshmallow e calda de chocolate no café da manhã.
Depois de engolir, num drive-thru tristíssimo, não sei que espécie de McTorpedo com Giga Fritas, nosso herói vomita a valer. A câmera não recua diante do que o estômago rejeitou.
Claro, o objetivo do filme é nausear e instruir. As cenas se repetem: Spurlock comendo McMuffins no Illinois, Spurlock comendo McNuggets em Nova York, Spurlock comendo McSundaes na Louisiana... "Super Size Me" está entre a gincana, o "reality show" e o documentário num sentido estrito.
Sabemos que ninguém come no McDonald's 30 dias em seguida. Tudo bem: a maratona alimentar foi a melhor forma que o diretor encontrou para dramatizar os estragos que a junk food ocasiona na população.
O filme traz informações impressionantes a respeito de quanto se gasta em propaganda de lanchonetes -dirigida a crianças- em comparação com as campanhas institucionais pela reeducação alimentar. Mostra a quantidade de porcaria que se come nas escolas de todo o país e o descaso geral com relação à necessidade de exercício físico.
Tudo isso é importante, e o filme deve ser visto. Mas, de alguma forma, "Super Size Me" me desperta mais contra-argumentos do que adesão.
Há coisas ridículas: um especialista declara que o queijo usado no cheeseburger é viciante. Spurlock nos leva a uma espécie de reformatório juvenil onde, depois da adoção de comida saudável, os alunos ficaram mais comportados e intelectualmente ativos. Também se apresenta uma academia de ginástica, com o pessoal se esfalfando naqueles aparelhos complicados, como um paraíso da boa saúde.
De minha parte, gostaria de ver um filme que mostrasse a quantidade de pessoas que se arrebentam ao fazerem exercícios nesses lugares. Spurlock poderia tentar passar seis horas por dia numa McBody qualquer. Poderia também fazer um filme sobre anorexia, sobre o abuso do automóvel nas grandes cidades, sobre a febre americana de processar empresas...
Qualquer documentário desses seria assustador, e todos esses temas juntos poderiam ser objeto de mais um filme de Michael Moore sobre a paranóia que toma conta dos Estados Unidos. Isso não invalida as críticas à junk food, mas talvez ilumine um outro aspecto da coisa: é a relação problemática que se estabeleceu, não sei se apenas na cultura americana, entre puritanismo e prazer, proibição e satisfação sensorial.
Tudo se torna viciante, tudo dá prazer, tudo é proibido, tudo faz mal, tudo deve ser consumido, tudo é ótimo, tudo é delicioso, tudo está em oferta. O assunto seria complicado demais, talvez, para um filme quase tão infantil quanto a culinária que condena.
Obviamente, Spurlock queria de fato se entupir de comida gostosa e proibida. Sua namorada é uma loirinha simpática e sem sal, especialista em cozinha vegetariana. Faz deliciosos pratos à base de aveia, acelga e ervilha torta, que são servidos a Spurlock como "último banquete" antes de seu ingresso no pesadelo do sorvete e do cheeseburger.
Com seus arrotos, vômitos e lambuzeiras, é como se o diretor tivesse encontrado uma forma benigna, digamos, de arreliar a mamãezinha. Em um dado momento, Spurlock conversa pelo telefone com sua mãe verdadeira. Ela lhe dá uns conselhos, mas o que se depreende, pela sua risada rouca de tabagista, é que não está muito aí para o caso.
Sobra a namorada vegetariana, cujas normas de correção alimentar serão transgredidas de forma ultrajante, obscena. Ao longo da experiência, a namorada fica com nojo do rapaz; o sexo entre os dois piora, e a culpa é do hambúrguer. A comida da mamãe se interpõe no leito conjugal; o tabu da comida calórica duplica o do incesto. O sexo feliz será puritano como uma torta de legumes.
O herói de "Super Size Me" é um daqueles típicos adolescentes de 30 anos, com namorada firme, que ainda quer barbarizar. No título do filme, talvez esteja a chave dessa psicologia. Algo assim: sei que sou um sujeito meio crianção; gostaria de "ser grande"; terminei "supersized". Não é um fracasso, muito pelo contrário.


Texto Anterior: Análise: Debate sobre audiovisual privilegia cinema
Próximo Texto: Panorâmica - Sociologia: Gilles Lipovetsky faz palestras em SP
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.