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MARCELO COELHO
A culpa do hambúrguer gigante
A idéia é meio tosca. Para
mostrar que o fast food é
pouco saudável, o diretor Morgan
Spurlock passou um mês comendo só no McDonald's. Café da
manhã, almoço e jantar. O resultado está em "Super Size Me", documentário que estréia nesta sexta-feira em São Paulo.
Spurlock engordou 11 quilos,
seu colesterol foi às alturas, e o estado de seu fígado alarmou os
médicos que acompanharam a
experiência. Além disso, o rapaz
se sentiu deprimido, exausto, irritadiço e viciado. Viveu semanas
de necessidade e nojo, de insatisfação e empanturramento.
Entretanto ele não perde o bom
humor diante das câmeras. Brinca com a atendente obesa, que lhe
oferece doses gigantes do veneno.
Faz palhaçada diante da nutricionista em pânico. Confraterniza com um grupo de gorduchas
gargalhantes -que ignora pontos básicos da cultura americana,
mas sabe de cor os ingredientes do
Big Mac. Exulta diante dos lapsos
verbais de um lobbista da indústria de alimentos.
Perto desse filme, os de Michael
Moore são de uma sutileza machadiana. Spurlock viaja por todo
o país, deliciando-se com a desinformação de seus compatriotas
do mesmo modo que se lambuza
de marshmallow e calda de chocolate no café da manhã.
Depois de engolir, num drive-thru tristíssimo, não sei que espécie de McTorpedo com Giga Fritas, nosso herói vomita a valer. A
câmera não recua diante do que o
estômago rejeitou.
Claro, o objetivo do filme é nausear e instruir. As cenas se repetem:
Spurlock comendo McMuffins no
Illinois, Spurlock comendo
McNuggets em Nova York, Spurlock comendo McSundaes na Louisiana... "Super Size Me" está entre
a gincana, o "reality show" e o documentário num sentido estrito.
Sabemos que ninguém come no
McDonald's 30 dias em seguida.
Tudo bem: a maratona alimentar
foi a melhor forma que o diretor
encontrou para dramatizar os estragos que a junk food ocasiona
na população.
O filme traz informações impressionantes a respeito de quanto se gasta em propaganda de
lanchonetes -dirigida a crianças- em comparação com as
campanhas institucionais pela
reeducação alimentar. Mostra a
quantidade de porcaria que se come nas escolas de todo o país e o
descaso geral com relação à necessidade de exercício físico.
Tudo isso é importante, e o filme deve ser visto. Mas, de alguma
forma, "Super Size Me" me desperta mais contra-argumentos do
que adesão.
Há coisas ridículas: um especialista declara que o queijo usado
no cheeseburger é viciante. Spurlock nos leva a uma espécie de reformatório juvenil onde, depois
da adoção de comida saudável, os
alunos ficaram mais comportados e intelectualmente ativos.
Também se apresenta uma academia de ginástica, com o pessoal
se esfalfando naqueles aparelhos
complicados, como um paraíso
da boa saúde.
De minha parte, gostaria de ver
um filme que mostrasse a quantidade de pessoas que se arrebentam ao fazerem exercícios nesses
lugares. Spurlock poderia tentar
passar seis horas por dia numa
McBody qualquer. Poderia também fazer um filme sobre anorexia, sobre o abuso do automóvel
nas grandes cidades, sobre a febre
americana de processar empresas...
Qualquer documentário desses
seria assustador, e todos esses temas juntos poderiam ser objeto
de mais um filme de Michael
Moore sobre a paranóia que toma conta dos Estados Unidos. Isso não invalida as críticas à junk
food, mas talvez ilumine um outro aspecto da coisa: é a relação
problemática que se estabeleceu,
não sei se apenas na cultura americana, entre puritanismo e prazer, proibição e satisfação sensorial.
Tudo se torna viciante, tudo dá
prazer, tudo é proibido, tudo faz
mal, tudo deve ser consumido, tudo é ótimo, tudo é delicioso, tudo
está em oferta. O assunto seria
complicado demais, talvez, para
um filme quase tão infantil quanto a culinária que condena.
Obviamente, Spurlock queria
de fato se entupir de comida gostosa e proibida. Sua namorada é
uma loirinha simpática e sem sal,
especialista em cozinha vegetariana. Faz deliciosos pratos à base
de aveia, acelga e ervilha torta,
que são servidos a Spurlock como
"último banquete" antes de seu
ingresso no pesadelo do sorvete e
do cheeseburger.
Com seus arrotos, vômitos e
lambuzeiras, é como se o diretor
tivesse encontrado uma forma benigna, digamos, de arreliar a mamãezinha. Em um dado momento, Spurlock conversa pelo telefone com sua mãe verdadeira. Ela
lhe dá uns conselhos, mas o que se
depreende, pela sua risada rouca
de tabagista, é que não está muito
aí para o caso.
Sobra a namorada vegetariana,
cujas normas de correção alimentar serão transgredidas de forma
ultrajante, obscena. Ao longo da
experiência, a namorada fica
com nojo do rapaz; o sexo entre os
dois piora, e a culpa é do hambúrguer. A comida da mamãe se interpõe no leito conjugal; o tabu da
comida calórica duplica o do incesto. O sexo feliz será puritano
como uma torta de legumes.
O herói de "Super Size Me" é
um daqueles típicos adolescentes
de 30 anos, com namorada firme,
que ainda quer barbarizar. No título do filme, talvez esteja a chave
dessa psicologia. Algo assim: sei
que sou um sujeito meio crianção;
gostaria de "ser grande"; terminei
"supersized". Não é um fracasso,
muito pelo contrário.
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