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CONTARDO CALLIGARIS
"Mensalão", caixa dois e outras falcatruas: essência ou acidentes?
A filosofia clássica tenta
estabelecer a diferença entre
essência e acidentes.
Por exemplo, a laranja tem
uma forma arredondada e, quando madura, apresenta uma cor
entre o vermelho e o amarelo: isso, junto com o tempo necessário
e o clima próprio para a maduração, é parte da essência da laranja.
Mas uma laranja pode estar
amassada e pode ser cortada no
meio para extrair suco, ou dividida em gomos para ser saboreada:
esses são acidentes, ou seja, são
traços apresentados pela laranja
que tenho na mão, mas não são
implicações da essência da laranja.
Note-se que há acidentes que só
se tornam possíveis por causa dos
traços essenciais da laranja. Ninguém, em princípio, quer o suco
de uma fruta amarga e fedorenta:
o gosto agradável da laranja (que
faz parte de sua essência) é responsável por sua transformação
(acidental) em suco.
A distinção entre essência e acidentes é também evocada no consultório dos terapeutas. Em geral,
quando as coisas não dão certo,
os humanos preferem pensar que
é por acidente, não por essência.
Se a relação com meu filho é uma
série ininterrupta de brigas infelizes, prefiro pensar que isso não
tem nada a ver com o meu ou o
seu jeito de SER: é porque eu ESTOU nervoso por causa do trabalho ou porque ele ESTÁ tenso por
causa da chata da namorada.
Conseqüência: pede-se ao terapeuta que ele arrume a situação,
de maneira que ambos ESTEJAM
diferentes. Mas, pelo amor de
Deus, que ele não comece a colocar perguntas sobre a infância ou
outras "baboseiras" que não têm
ligação nenhuma (não é?) com o
que está acontecendo, que é apenas um acidente passageiro, circunstancial.
A mesma distinção entre essência e acidentes foi central nos debates ao redor do fracasso do socialismo real. Quando ruiu o sistema soviético, alguns diziam que
o desastre era acidental: fruto da
mediocridade dos burocratas, das
contingências (a Primeira Guerra
Mundial) que produziram o socialismo logo num país atrasado
como a Rússia de 1917 ou do fato
de que a Rússia ficou isolada, defendendo sozinha a bandeira do
socialismo num mundo hostil. No
extremo oposto, outros afirmavam que o desastre era a conseqüência de vícios essenciais no
projeto leninista ou no pensamento do próprio Marx.
Acho difícil não pensar nessa
discussão hoje, enquanto muitos
amigos petistas ou simpatizantes
do PT parecem entender a crise
atual como um mero acidente. Ao
ouvi-los, para que o sol volte a
raiar basta excluir os quadros, os
deputados e os senadores "ruins".
A idéia é a seguinte: uma turma
de elementos suspeitos se insinuou (acidentalmente) nas fileiras do PT e do governo, a solução
é a purga que os eliminará. Só sobra esperar a lista completa dos
maus sujeitos. O único suspense é:
o presidente está ou não entre
eles?
Poucos levantam a hipótese de
que a crise não seja apenas um
acidente, mas o efeito de um problema de essência. Ora, para a segurança de qualquer cesta de maçãs, é bom separar as maçãs bichadas, mas é crucial se assegurar
que o bicho não seja endêmico no
tipo de maçã ou na colheita que a
gente escolheu.
Estamos dispostos a apontar a
relação entre as falcatruas da direita e os vícios essenciais do liberalismo. Por exemplo, a corrupção "collorida" foi a obra de uma
quadrilha "acidental" que trabalhava em prol de seu próprio bolso, mas uma quadrilha desse tipo
é também o efeito previsível da
"essência" de um sistema que
exalta o enriquecimento individual acima das necessidades da
comunidade.
Por razões sobretudo sentimentais, parecemos menos dispostos a
interrogar a relação entre as falcatruas de hoje e o ideário político
e social da esquerda.
Ora, se alguns mal-aventurados
usaram de recursos infaustos para garantir e estender o alcance
do poder do PT e do governo, talvez isso não seja apenas um "acidente" de percurso (a obra de maçãs bichadas). Talvez isso seja
também uma expressão ("essencial", então) do projeto político e
social com o qual muitos de nós
sonharam ou ainda sonham.
Ao que parece, os supostos
"feiosos" (Zé Dirceu, Delúbio, Silvio Pereira etc.) são acusados de
uma confusão que se realizou a
cada vez que um modelo socialista chegou ao poder.
Só para lembrar: regularmente,
os socialismos realizados ampliaram o Estado para colocá-lo ao
serviço do governo e ampliaram o
governo para colocá-lo ao serviço
do partido. Nesses casos, quase
sempre, sem hesitar, os funcionários de Estado, governo e partido
(assim confundidos) agiram contra a legalidade democrática, por
se considerarem depositários de
um ideário absoluto, nobre e
bem-intencionado. A convicção
de ter o monopólio do bem autorizou qualquer embuste ou crime
sem nem sequer produzir os tormentos da culpa moral.
Não é uma razão para renunciar, de repente, a nossas melhores esperanças sociais. Mas é uma
ocasião, isso sim, para reconsiderar com cuidado os projetos que
pretendem realizá-las.
Um exemplo básico: alguém,
hoje, pensaria ainda que estatizar
seja um jeito de tornar nossa sociedade mais democrática?
@ - ccalligari@uol.com.br
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