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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
Um copo de mar
Entre prosa poética e monólogo interior, "Odete Inventa o Mar" busca formas de representar o irrepresentável
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QUEM VISITA o casarão de Dona Yayá (1887-1961), tombado pelo patrimônio histórico
em São Paulo, se impressiona com o
solário, um espaço cercado, pouco
mais largo que um corredor, que, encimado por janelões, tinha a função
de permitir à velha senhora passear
sua loucura solitária.
Mais que o confinamento triste da
herdeira rica, sem família, cercada
por agregados, enclausurada e vigiada dos 32 anos até a morte, as paredes com olhos concretizam o fascínio e a inacessibilidade de seus labirintos interiores: no que pensava ela
durante esse vaivém sem fim, nos limites exíguos daquele espaço? Que
expansões e freios dirigiam suas fantasias? As passadas regulares conferiam palpabilidade ao tempo, que
trocou a moça em velha, a vida em morte, sem escapar do recinto-ampulheta?
À exemplo de Beckett, em "Footfalls" (Passos), peça que mereceu excelente montagem brasileira recente de Rubens Rusche, "Odete Inventa o Mar" (da atriz, dramaturga e
professora Sônia Machado Azevedo) explora, numa narrativa ficcional oscilante entre a prosa poética e
o monólogo interior, possibilidades
de representar fragmentos dessa experiência irrepresentável, o alheamento, adivinhada às tentativas. Ao
contrário do irlandês, contudo, Sônia Azevedo prefere à contenção o
alargamento do lirismo, discurso
em ondas, como o de Virginia Woolf,
evocado na quarta capa.
Protagonista ausente, a personagem do título vai se compondo a partir de memórias da irmã mais nova,
costuradas num fluxo temporal desordenado: surge a menina viva e
solta, cujo quintal era o mar, em São
Vicente; a liberdade de gestos e atitudes, esbarrando a extravagância
aos olhos da família grande; a adolescência, agravando a preocupação
em alarme, culminando na internação; as visitas familiares, dolorosas,
espaçadas, até esvaírem-se de todo;
o cotidiano da clínica, imaginado
com curiosidade aflita e culpada,
prolongando-se até a morte nonagenária de Odete.
Tecnicamente, a convivência entre registros temporais diversos se
apóia no ritmo associativo com suas
frases nominais, ausência de pontuação e escrita imagética, construindo um sentido por sugestão,
mais que por lógica discursiva. O
tempo se espacializa na metáfora do
título: o mar, tanto o paraíso perdido
da menina como a duração expandida de uma vida, examinada em bloco
pela irmã, assim sentida por Odete.
Como em Faulkner, o mergulho
na consciência de uma personagem
ilhada em universo próprio (caso do
idiota Benjy, de "O Som e a Fúria")
pode complicar o nó temporal de
uma narrativa não-linear. Aqui, a
persistência da imagem cristalizada
da irmã adolescente -ainda entre
bonecas e os primeiros saltos altos,
quando roubada do convívio familiar- briga com as evidências da
passagem do tempo (as mortes dos
pais, a mudança da casa da infância),
incompatível com as intuições sobre
a rotina efetiva da internação. Nessa
disputa está o melhor do livro.
ODETE INVENTA O MAR
Autora: Sônia Machado de Azevedo
Editora: Perspectiva
Quanto: R$ 22 (92 págs.)
Avaliação: bom
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