São Paulo, sábado, 18 de agosto de 2007

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Um copo de mar


Entre prosa poética e monólogo interior, "Odete Inventa o Mar" busca formas de representar o irrepresentável

QUEM VISITA o casarão de Dona Yayá (1887-1961), tombado pelo patrimônio histórico em São Paulo, se impressiona com o solário, um espaço cercado, pouco mais largo que um corredor, que, encimado por janelões, tinha a função de permitir à velha senhora passear sua loucura solitária.
Mais que o confinamento triste da herdeira rica, sem família, cercada por agregados, enclausurada e vigiada dos 32 anos até a morte, as paredes com olhos concretizam o fascínio e a inacessibilidade de seus labirintos interiores: no que pensava ela durante esse vaivém sem fim, nos limites exíguos daquele espaço? Que expansões e freios dirigiam suas fantasias? As passadas regulares conferiam palpabilidade ao tempo, que trocou a moça em velha, a vida em morte, sem escapar do recinto-ampulheta?
À exemplo de Beckett, em "Footfalls" (Passos), peça que mereceu excelente montagem brasileira recente de Rubens Rusche, "Odete Inventa o Mar" (da atriz, dramaturga e professora Sônia Machado Azevedo) explora, numa narrativa ficcional oscilante entre a prosa poética e o monólogo interior, possibilidades de representar fragmentos dessa experiência irrepresentável, o alheamento, adivinhada às tentativas. Ao contrário do irlandês, contudo, Sônia Azevedo prefere à contenção o alargamento do lirismo, discurso em ondas, como o de Virginia Woolf, evocado na quarta capa.
Protagonista ausente, a personagem do título vai se compondo a partir de memórias da irmã mais nova, costuradas num fluxo temporal desordenado: surge a menina viva e solta, cujo quintal era o mar, em São Vicente; a liberdade de gestos e atitudes, esbarrando a extravagância aos olhos da família grande; a adolescência, agravando a preocupação em alarme, culminando na internação; as visitas familiares, dolorosas, espaçadas, até esvaírem-se de todo; o cotidiano da clínica, imaginado com curiosidade aflita e culpada, prolongando-se até a morte nonagenária de Odete.
Tecnicamente, a convivência entre registros temporais diversos se apóia no ritmo associativo com suas frases nominais, ausência de pontuação e escrita imagética, construindo um sentido por sugestão, mais que por lógica discursiva. O tempo se espacializa na metáfora do título: o mar, tanto o paraíso perdido da menina como a duração expandida de uma vida, examinada em bloco pela irmã, assim sentida por Odete.
Como em Faulkner, o mergulho na consciência de uma personagem ilhada em universo próprio (caso do idiota Benjy, de "O Som e a Fúria") pode complicar o nó temporal de uma narrativa não-linear. Aqui, a persistência da imagem cristalizada da irmã adolescente -ainda entre bonecas e os primeiros saltos altos, quando roubada do convívio familiar- briga com as evidências da passagem do tempo (as mortes dos pais, a mudança da casa da infância), incompatível com as intuições sobre a rotina efetiva da internação. Nessa disputa está o melhor do livro.


ODETE INVENTA O MAR
Autora:
Sônia Machado de Azevedo
Editora: Perspectiva
Quanto: R$ 22 (92 págs.)
Avaliação: bom


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