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Crítica/ensaio
Autor discute como se falar sobre livros não-lidos
FLÁVIO MOURA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
"Como Falar dos Livros que Não Lemos" ("Comment
Parler des Livres que l'on N'A
pas Lus?", ed. Minuit, 162 págs.,
14,25, R$ 40), do psicanalista
e professor de literatura francesa Pierre Bayard, é uma espécie de "Zelig" em forma de
ensaio. O livro funciona como
antídoto para leitores que, a
exemplo do personagem de
Woody Allen, têm vergonha de
revelar os livros que não leram.
Bayard se gaba de discorrer
com segurança sobre "Ulisses",
de James Joyce, sem jamais ter
aberto o livro, e defende que a
sacralização da leitura é só uma
maneira de perpetuar o fetiche
e a pose intelectual.
Partisse de um guru da auto-ajuda, a provocação teria fôlego
curto. Mas Bayard causou um
rebuliço considerável quando o
livro saiu na França, no início
do ano. Professor na Universidade de Paris 8 e autor de estudos sobre Maupassant e Shakespeare, ele desenvolve uma
reflexão efetiva e fala sério
quando enumera as diversas
maneiras de não ler um livro.
Na equação proposta por Bayard, o mais difícil não é ler até
o fim, mas orientar-se em meio
aos autores e referências que
compõem a "biblioteca virtual"
da humanidade. Pode-se não
dominar o conteúdo de um livro, mas saber o lugar que ocupa em relação aos outros é condição suficiente para incorporá-lo ao repertório.
A segurança dos juízos de
Paul Valéry sobre Proust -o
poeta e crítico francês confessa
não ter lido "Em Busca do
Tempo Perdido"- é um entre
os exemplos persuasivos fornecidos pelo autor. É verdade que
o anedotário sobre os clássicos
não lidos pelos grandes críticos
é uma pista falsa. A "honestidade" em assumir as lacunas nessas ocasiões atua no sentido
oposto: acaba por reforçar a
imagem de erudito daquele que
confessa a heresia suprema de
não ter lido a obra completa de
Goethe, ou, vá lá, de Tolstói.
Apesar da vocação para abastecer mexericos literários e do
título de manual, o livro de Bayard está mais para Quartier
Latin que para Lair Ribeiro.
Conjunção rara de olhar sociológico e auto-ironia, faz troça
das escolas críticas empenhadas na defesa exclusiva da autonomia do texto.
A sociologia costuma demonstrar como editoras, críticos, jornais e os jogos de interesse atuam sobre a construção do valor literário. É nesse contexto que ganham sentido as
leituras pela metade, os livros
esquecidos, as opiniões alheias
ou mesmo o conhecimento sobre obras que nunca tivemos
nas mãos. São ferramentas a
mais para complicar o quebra-cabeças da interpretação.
Não à toa incluído numa coleção de nome Paradoxo, o livro transforma a defesa da não
leitura em meio de ampliar as
vias de acesso ao trabalho literário. Seria perda de tempo levar ao pé da letra tudo o que
Bayard diz -e nem ele parece
disposto a tanto. Mas antes de
desqualificá-lo convém examinar se o desembaraço com que
trata do assunto não faria bem
a círculos letrados brasileiros.
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