São Paulo, sábado, 18 de agosto de 2007

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Crítica/ensaio

Autor discute como se falar sobre livros não-lidos

FLÁVIO MOURA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"Como Falar dos Livros que Não Lemos" ("Comment Parler des Livres que l'on N'A pas Lus?", ed. Minuit, 162 págs., 14,25, R$ 40), do psicanalista e professor de literatura francesa Pierre Bayard, é uma espécie de "Zelig" em forma de ensaio. O livro funciona como antídoto para leitores que, a exemplo do personagem de Woody Allen, têm vergonha de revelar os livros que não leram.
Bayard se gaba de discorrer com segurança sobre "Ulisses", de James Joyce, sem jamais ter aberto o livro, e defende que a sacralização da leitura é só uma maneira de perpetuar o fetiche e a pose intelectual.
Partisse de um guru da auto-ajuda, a provocação teria fôlego curto. Mas Bayard causou um rebuliço considerável quando o livro saiu na França, no início do ano. Professor na Universidade de Paris 8 e autor de estudos sobre Maupassant e Shakespeare, ele desenvolve uma reflexão efetiva e fala sério quando enumera as diversas maneiras de não ler um livro.
Na equação proposta por Bayard, o mais difícil não é ler até o fim, mas orientar-se em meio aos autores e referências que compõem a "biblioteca virtual" da humanidade. Pode-se não dominar o conteúdo de um livro, mas saber o lugar que ocupa em relação aos outros é condição suficiente para incorporá-lo ao repertório.
A segurança dos juízos de Paul Valéry sobre Proust -o poeta e crítico francês confessa não ter lido "Em Busca do Tempo Perdido"- é um entre os exemplos persuasivos fornecidos pelo autor. É verdade que o anedotário sobre os clássicos não lidos pelos grandes críticos é uma pista falsa. A "honestidade" em assumir as lacunas nessas ocasiões atua no sentido oposto: acaba por reforçar a imagem de erudito daquele que confessa a heresia suprema de não ter lido a obra completa de Goethe, ou, vá lá, de Tolstói.
Apesar da vocação para abastecer mexericos literários e do título de manual, o livro de Bayard está mais para Quartier Latin que para Lair Ribeiro. Conjunção rara de olhar sociológico e auto-ironia, faz troça das escolas críticas empenhadas na defesa exclusiva da autonomia do texto.
A sociologia costuma demonstrar como editoras, críticos, jornais e os jogos de interesse atuam sobre a construção do valor literário. É nesse contexto que ganham sentido as leituras pela metade, os livros esquecidos, as opiniões alheias ou mesmo o conhecimento sobre obras que nunca tivemos nas mãos. São ferramentas a mais para complicar o quebra-cabeças da interpretação.
Não à toa incluído numa coleção de nome Paradoxo, o livro transforma a defesa da não leitura em meio de ampliar as vias de acesso ao trabalho literário. Seria perda de tempo levar ao pé da letra tudo o que Bayard diz -e nem ele parece disposto a tanto. Mas antes de desqualificá-lo convém examinar se o desembaraço com que trata do assunto não faria bem a círculos letrados brasileiros.


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