|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/romance
Ballard une sexo, violência e tecnologia
Romance adaptado para o cinema por Cronenberg mostra grupo de pessoas que mistura gozo com desastres de trânsito
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Para os ligeiramente
mais velhos, "Crash"
antes de ser o drama de
Paul Haggis, ganhador de um
punhado de Oscars em 2005, é
o filme de David Cronenberg
que causou polêmica no Festival de Cannes de 1996 por mostrar um grupo de pessoas que
mistura gozo com desastres de
trânsito.
O "Crash" de Cronenberg baseia-se neste romance do britânico J.G. Ballard, publicado em
1973. Ballard -que, mais tarde,
lançaria o mais bem-comportado e semi-autobiográfico "Império do Sol", filmado por
Spielberg- também enfrentou
seu quinhão de censura.
O romance é cru e repetitivo
em seu afã de converter o carro
e seus destroços em objeto de
fetiche, de descrever as incomuns e por vezes repugnantes
aventuras sexuais dos personagens. Em prefácio de 1995, reproduzido nesta nova edição,
Ballard orgulha-se em imaginar se este não seria o "primeiro romance pornográfico baseado na tecnologia".
"Crash" centra-se na figura
de um produtor londrino de comerciais para televisão, também chamado Ballard, que narra a história. Após sofrer um acidente automobilístico em
que mata um homem, ele passa
a sentir-se atraído por imagens
de sangue, morte e deformação.
E começa a agir conforme a
seus desejos. Sua mulher e também a viúva do motorista morto no acidente, com quem o
narrador acaba tendo um caso,
compartilham a tara.
Uma nova voltagem se estabelece quando o fotógrafo Vaugham entra em cena. Fascinado
por carros e colisões, com o corpo coberto de cicatrizes, Vaugham sonha em trombar literalmente de frente com a atriz
Elizabeth Taylor -ainda muito
popular, na época.
O plano dá errado, conforme
nos informa o primeiro parágrafo. O fotógrafo arremete o
carro de um elevado, mas, em
vez de chocar-se contra a limusine da atriz, cai em cima de um
ônibus cheio de turistas.
Discurso refinado
Muito foi dito sobre a confluência entre sexo, violência e
tecnologia que há neste livro.
Símbolo da égide burguesa no
que ela tem de sinistramente
maternal e corrosivamente individualista, o automóvel, com
suas engrenagens, lataria e fluídos, oferece-se tanto à cópula
quanto à chacina.
Essa mixórdia de sexo e violência é relatada por meio de
um discurso refinado, próximo
do poético. Uma palavra bastante repetida no romance é
"estilizar" e seus derivados. O
comportamento dos personagens, os gestos, coitos e mortes
são exibidos pelo prisma da estilização, por uma requintada
renda verbal que fornece um
verniz "dignificador" para
aquilo que, de outro modo, seria moralmente condenável.
Se nada parece ter sentido
nessa era tecnológica de reprodutibilidade insana, uma época
de contornos fugazes e de cópias para sempre deslocadas de
sua matriz, então a última coisa
que resta -Ballard parece sugerir- é a estilização, que rege,
com a agudeza do aço frio, a lógica, a ética e os afetos humanos.
CRASH
Autor: J. G. Ballard
Tradução: José Geraldo Couto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 42 (240 págs.)
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Crítica/ensaio: Autor discute como se falar sobre livros não-lidos Próximo Texto: Saiba mais: Personagens ligam autor a Cronenberg Índice
|